MENU

Artigo

Auxílio moradia para juízes: vestígios de improbidade e peculato

Publicado: 22 Março, 2018 - 08h39

 

No Poder Judiciário estão os titulares dos contracheques que delimitam o teto salarial no serviço público do Brasil. Além do subsídio estabelecido pela Constituição Federal, juízes se acostumaram a fabricar penduricalhos controversos, sendo um deles o auxílio-moradia.

 

A ginástica remuneratória não fica só no Judiciário. Promotores do Ministério Público e conselheiros dos Tribunais de Contas também já se autoconcedem auxílio-moradia.

 

Esta análise tem como objetivo geral verificar a legalidade do recebimento do auxílio-moradia, por juízes do Poder Judiciário – com seus consequentes reflexos nos demais órgãos – à luz da Constituição Federal e dos Direitos Administrativo e Penal, além de outros aspectos jurídicos concernentes ao tema.

 

 

Surgimento do auxílio-moradia no Judiciário

 

Novidades sobre as contradições existentes no Poder Judiciário, que não imunizam nem este da crise institucional, surgem a cada dia. Atualmente, podemos ver estampado nos noticiários que está sendo concedido auxílio-moradia para desembargadores e juízes em quase todo território brasileiro.

 

O auxílio-moradia dos juízes surge no ordenamento jurídico, a partir da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), Lei Complementar nº 35 de 1979, nove anos antes da promulgação da Constituição Federal atualmente vigente. O benefício consiste em uma “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado”.

 

A discussão sobre esse benefício nos Tribunais Superiores ganhou mais força no ano 2000, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) invocou a paridade entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O STF autoconcedeu a extensão desse benefício – que até então era devido apenas aos deputados federais – aos seus ministros e juízes federais.

 

A partir disso, no âmbito federal, em todas as partes do país, o auxílio-moradia passou a ser concedido e quitado, em forma de indenizações retroativas, em favor de magistrados federais que estavam vinculados ao Judiciário entre os anos de 1994 e 1998.

 

Depois, não demorou para esse “bilhete premiado” chegar aos tribunais estaduais, denominado como Parcela Autônoma de Equivalência (PAE). O auxílio moradia retroativo para juízes, promotores e conselheiros têm custado aos cofres públicos deste país valores multimilionários.

 

Só no estado de Sergipe, por exemplo, segundo o sindicato dos trabalhadores do Tribunal de Justiça, Sindijus, a PAE (ou auxílio-moradia retroativo) para juízes já custou o montante aproximado de R$ 100 milhões, pagos no período de 2012 a 2017. O rendimento mensal de um juiz nesse órgão varia desde R$ 26.125,16 até R$ 30.471,11. E o auxílio moradia que recebe todos os meses é de R$ 4.377,73, além da PAE retroativa.

 

 

Irregularidades 

 

A concessão do auxílio-moradia aos membros do Judiciário brasileiro gera dois desdobramentos:

 

O primeiro é o pagamento da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), que gerou o pagamento de um auxílio-moradia retroativo, retrocedendo até o ano de 1994, baseando-se não em uma lei, mas em uma decisão do STF que incorporou esse benefício no Poder Judiciário em analogia ao direito que era previsto apenas para os Deputados Federais.

 

O segundo materializa-se no pagamento do auxílio-moradia mensalmente. Atualmente amparado por força da Resolução 199 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – que em 2014 estendeu o auxílio-moradia a toda a magistratura do país, autorizando o recebimento cumulativamente com os subsídios – somada às leis que inserem esse benefício no ordenamento jurídico estadual em diversas partes do país.

 

O entendimento predominante de que deve haver simetria de tratamento entre a magistratura e o Ministério Público, logo já tratou de estender a PAE aos promotores de todas as partes do país. Não foi difícil aos conselheiros dos tribunais de contas reivindicarem que também mereciam o mesmo tratamento.

 

Os vestígios das irregularidades desse acréscimo remuneratório são manifestados nas duas situações.

 

 

Irregularidades no pagamento retroativo da PAE

 

De início, é possível afirmar que os magistrados estaduais não têm direito a ajuda de custo para moradia retroativo ao ano de 1994, uma vez que não havia lei naquele período autorizando o pagamento. Ainda que houvesse respaldo legal, seria razoável condicionar à apresentação dos comprovantes das despesas com moradia naquele período, o que não se vê sendo exigido.

 

Além de tudo, o direito de requisitar o benefício nos dias atuais está prescrito, pois passados tantos anos desde 1994, é nítido o desrespeito ao prazo de prescrição de três anos, estipulado pelo Código Civil para postular uma ação indenizatória contra a Fazenda Pública.

 

Outro fator que levanta a possibilidade de contestações à legalidade do pagamento do auxílio-moradia retroativo, através da denominação Parcela Autônoma de Equivalência, é no que se refere à possibilidade do acréscimo de juros. Pois, naturalmente pergunta-se: como é possível computar juros ao erário público, que se constitui em uma sanção ocasionada pela impontualidade culposa do devedor, relacionados a um período em que não existia norma que determinasse o pagamento?

 

 

Irregularidades no pagamento do auxílio-moradia

 

O pagamento do auxílio-moradia a magistrados em todas as partes do país, como um acréscimo remuneratório, mês a mês, representa uma violação ao parágrafo 4º, do atrigo 39, da Constituição Federal. A CF estipula que os membros do Poder Judiciário devem ser remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedando o acréscimo de qualquer outra espécie remuneratória.

 

Diante disso, a Ordem dos Advogados do Brasil tem se manifestado com firmeza sobre o tema, defendendo a inconstitucionalidade do benefício. Segundo afirma, o conselheiro federal Maurício Gentil Monteiro: “Mais evidente não pode ser, portanto, a inconstitucionalidade de qualquer previsão legislativa assecuratória do pagamento de verbas como “auxílio-moradia”, “auxílio-alimentação”, “auxílio-saúde” para juízes, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas, quando interpretada como verba de caráter puramente remuneratório.” (Advocacia Operária, Internet, 2018)

 

Conforme já foi demonstrado, a Lei Complementar Federal nº 35/1979 (LOMAN) tem sido a raiz dos fundamentos legais utilizados para se autoconceder auxílio-moradia nos tribunais. Inclusive para fundamentar a Resolução do Conselho Nacional de Justiça.

 

Na aplicação concreta do benefício é possível encontrar mais uma anormalidade. O art. 65, II, da LOMAN é bastante claro ao estabelecer que o auxílio somente é devido onde não houver residência oficial para juiz e também exclui o benefício nas capitais: “Art. 65. Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens:  (...) II - ajuda de custo, para moradia, nas Comarcas em que não houver residência oficial para Juiz, exceto nas Capitais.”

 

Observa-se, portanto, que ainda que o benefício tivesse sido recepcionado pela Constituição a autorização da sua concessão não deve ser generalizada. Existem critérios a serem respeitados. Mas, na prática, o que se constata são magistrados recebendo auxílio-moradia indistintamente, ignorando as residências oficiais que são colocadas à disposição e o fato de muitos exercerem suas funções nas capitais onde possuem residência própria.

 

 

Desrespeito aos Princípios da Moralidade e da Impessoalidade

 

Necessário ainda sopesar a concessão do auxílio-moradia no Judiciário à luz dos princípios que devem obedecer a Administração Pública, direta e indireta, em todos os Poderes.

 

Diante dos princípios previstos no caput do artigo 37, da Constituição Federal – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – merece ser avaliada cuidadosamente se realmente existe uma correlação destes com o auxílio-moradia em exame.

 

De acordo com o autor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da moralidade administrativa impõe que “a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação”. (MELLO, 2003, p. 109)

 

Ainda segundo o mesmo autor, o princípio da impessoalidade “traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas, nem favoritismo nem perseguições são toleráveis.” (MELLO, 2003, p. 104)

 

Dessa forma, infere-se que não há como tratar do tema em testilha sem desdobrar a verificação da sua validade perante os referidos princípios. Uma vez que se trata de um aumento remuneratório concedido pelos próprios beneficiados e, ao que se percebe, decaído em diversas irregularidades.

 

Nos dias atuais, a população manifesta sua inquieta indignação e tem exigido explicações aos membros do Judiciário a respeito do referido benefício, como um mínimo de respeito pelos contribuintes. Enquanto isso, gestores dos tribunais que autorizam a concessão do auxílio continuam silenciados, ignorando completamente as preocupações que estão sendo levantadas por aqueles que legitimam o poder do Estado, sem o qual não existiria poder nenhum aos juízes.

 

Em nível estadual, muitas vezes o benefício tem sido criado pelos próprios desembargadores, o que, por si, já é suficiente para levantar a preocupação acerca da pessoalidade e da imoralidade dessa conduta.

 

Percebe-se quão perigoso é o fato de estar se tornando cada vez mais comum o ativismo judicial desenfreado, em que os membros do Poder Judiciário usurpam as funções do Poder Legislativo – cujos membros são eleitos pela população para legislar – e os julgadores criam leis, muitas vezes, para contemplar seus próprios interesses. E, com essa carga de normas que corriqueiramente vêm gerando superpoderes no Judiciário, junto, vem também a ambição infinita de aumentar o valor dos seus próprios serviços.

 

O incremento da remuneração dos juízes com o recebimento de auxílio-moradia representa uma atitude discriminatória em relação aos demais trabalhadores que teriam inúmeras razões, mas não gozam desse direito. Para o administrativista Bandeira de Mello, o princípio da impessoalidade “não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia” e complementa a sua linha de raciocínio sustentando que “além disso, assim como ‘todos são iguais perante a lei’ (art. 5º, caput), a fortiori teria de sê-lo perante a Administração.”  (MELLO, 2003, p. 104)

 

Ademais, se a própria existência do benefício é uma burla à Constituição da República, por logica, também transgride o princípio da legalidade.

 

 

Consequencias jurídicas 

 

Ante o fato de está sendo incorporado ao patrimônio de desembargadores e juízes dinheiro público que, em uma razoabilidade muito esforçada, deveria ser uma ajuda de custo para moradia nas localidades em que não houvesse residência oficial à disposição, merecem ser analisadas as implicações nos ramos do Direito, inclusive no Direito Penal.

 

 

Peculato. Atualmente, apesar dos clamores dos setores da sociedade que defendem a inconstitucionalidade do benefício, ao que parece, as egrégias cortes de justiça não demonstram preocupação em fazer o debate sobre a legalidade dessa injeção salarial, muito menos com a estipulação de critérios para o pagamento desse dinheiro. Entretanto, o comodismo não os exime de terem ciência da gravidade da conduta e das consequências que podem advir.

 

É possível deduzir que, a partir da comprovação de que o pagamento dessa vantagem econômica foi indevida, restará confirmada a obtenção de uma vantagem patrimonial decorrente de um comportamento ilegal, com absoluto nexo entre o exercício da função pública exercida pelo beneficiado e o resultado que causará o seu enriquecimento ilícito ou, no mínimo, sem justificativa.

 

Tais vestígios levam à conduta prevista no artigo 312, caput, do Código Penal (CP) que cataloga o peculato, como sendo o crime de apropriação de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, publico ou privado, por parte de qualquer funcionário público que tenha a posse em razão do cargo. Vejamos: “Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.”

 

Também comete o crime o funcionário público que, não tendo a posse, subtrai-o ou concorre para que seja subtraído, valendo-se da facilidade que lhe proporciona o cargo.

 

Ou seja, em caso de declaração da ilegalidade do auxílio e de que ministros e desembargadores incorreram na conduta de apropriar-se de dinheiro indevido, é possível analisar também a hipótese de os demais juízes terem cometido o crime de peculato. Já que, embora a maioria dos juízes não tenham poderes para administrar os recursos, receberam o auxílio, neste caso, mediante erro de outrem, conforme capitulado no art. 313 do CP.

 

Apesar disso, se através de uma defesa técnica avigorada, os julgadores acusados sustentarem que não houve uma apropriação indevida do dinheiro público, sob a insistência de estarem recebendo esse aumento remuneratório com respaldo em norma administrativa criada por seus próprios pares, ainda restará a necessidade de examinar até mesmo a possibilidade de haver sido cometida fraude contra Administração Pública.

 

 

Improbidade administrativa. Considerando que o pagamento de auxílio-moradia a essa categoria de servidores públicos ofende o princípio da moralidade administrativa, não precisa esforço para confirmar que também se constitui ato de improbidade administrativa, violando também o princípio da lealdade administrativa, previsto na Lei nº 8.429/92, in verbis: “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente”.

 

Outro fator que merece destaque na celeuma da concessão do auxílio-moradia, até aqui injustificável, é o fato de, no âmbito administrativo, a legislação brasileira possuir uma blindagem que reveste com um protecionismo quase que sagrado os integrantes da magistratura. Por essa razão, com fundamento em uma legislação dos tempos da ditadura militar (LC nº 35/79), a penalidade máxima aplicada aos juízes no Brasil é a de aposentadoria, o que frustra a aplicação justa da repreensão, na hipótese de vir a ser comprovada a infração.

 

 

Conclusão

 

Resta inegável que o auxílio-moradia ora explorado representa uma ofensa à realidade social do Brasil. Enquanto juízes, que acreditam ter poderes divinos e recebem alguns dos maiores salários do país, acumulam ajuda de custo para moradia; muitos trabalhadores, conscientes que são simples mortais, não têm o direito a uma moradia digna.

 

Com a certeza de que Judiciário nem sempre é sinônimo de Justiça, compete às entidades das Sociedade Civil, sobretudo às organizações políticas da classe trabalhadora – sindicatos, centrais sindicais, movimentos sociais e partidos políticos à esquerda – cobrarem a declaração da inconstitucionalidade do auxílio-moradia. A cobrança é indispensável na institucionalidade dos tribunais superiores, mas a pressão nas ruas é desafiadora para assegurar a justiça.

 

Caso seja declarada a irregularidade dessa turbinada salarial dos membros do Poder Judiciário – estendida aos membros do Ministério Público e Tribunais de Contas – devem ser adotadas medidas para reparar os danos causados, reprováveis nos campos administrativo e penal. Aos membros gestores dos órgãos restará revelada a prática do peculato. Já em relação aos demais membros que foram beneficiados, mas não possuem o poder de gestão, restará a incidência do peculato por erro de outrem.

 

Caso a justiça seja alcançada, a improbidade administrativa e a responsabilidade civil devem ter consequência. E mais do que tudo, é legítimo assumir a expectativa de que os sujeitos beneficiados devolvam ao Estado os valores recebidos indevidamente e compensem os danos causados neste que golpe alonga a lista dos maiores desfalques aos cofres públicos da história do Brasil.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Código civil brasileiro. Disponível em . Acesso em 15/03/2018.

 

______. Código de processo penal brasileiro. Disponível em Acesso em 15/03/2018.

 

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15/03/2018.

 

_______. Lei Complementar nº 35 de 14 de março de 1979. Disponível em . Acesso em 15/03/2018.

 

_______. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Resolução nº 5/2012. Disponível em . Acesso em 16/03/2018.

 

ADVOCACIA OPERÁRIA. Auxílios Inconstitucionais. Disponível em: Acesso em 19/03/2018.

 

MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2003.