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Artigo

Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise cabal do capitalismo

Publicado: 10 Outubro, 2011 - 14h23

A crise financeira global vem sendo invariavelmente remediada pelas mesmas medidas ortodoxas e neoliberais que levaram ao colapso. O Correio da Cidadania entrevistou o socilogo Ricardo Antunes, que analisou o momento de rebelies vivido em diversos pases e continentes e as suas respectivas singularidades.

Antunes parte de um olhar profundo em direo s engrenagens capitalistas atuais e seus reflexos no mundo do trabalho. Traa, a partir da, um renovado quadro de interpretao para a atual ebulio social. Busca uma viso tambm retrospectiva, na medida em que se volta a analogias com o passado sculo XX, que foi palco de guerras, lutas sociais e posteriores transformaes geopolticas, com a reconfigurao das sociedades de todo o mundo.

A partir de vrios estudos que, j h alguns anos, vm dando conta de uma nova morfologia das lutas trabalhistas, Antunes no tem dvidas de que est em andamento uma crise estrutural da forma de dominao do capitalismo. O que significar renovadas quedas de brao entre dois velhos antagonistas: capital e trabalho.

Diante deste cenrio, o socilogo alerta para a necessidade de se restaurarem as pautas do mundo do trabalho, cada vez mais precarizado nos quatro cantos do Globo. Reduo da jornada de trabalho e um profundo questionamento a respeito das reais necessidades de produo so os carros-chefes dessa longa e renascente batalha, que no momento ainda carece de posicionamento poltico coeso das classes em fria.

Correio da Cidadania: Como voc encara a crise financeira que volta a mostrar a sua fora, aps a intensificao das dificuldades dos EUA e dos pases europeus, especialmente os menos ricos, em lidar com suas explosivas dvidas pblicas? Estamos no segundo round da crise que explodiu em 2008?

Ricardo Antunes: Eu diria exatamente isso. No uma nova crise, mas outro momento de uma crise estrutural muito mais profunda, financeira, na medida em que atinge instituies financeiras, corporaes fortes dos EUA, Inglaterra, Itlia e tantos outros pases como Espanha, Portugal, Grcia etc. preciso entender que se trata de uma crise estrutural do capitalismo, com manifestaes mais profundas. Ela est colocando em xeque a prpria existncia da humanidade, na medida em que os recursos utilizados para sua soluo seja pra salvar os bancos, a GM ou muitas outras empresas so recursos que aumentam a dvida de tais pases e recaem sobre a populao trabalhadora, que em todos eles est sofrendo cortes de salrios, previdncia, sade -, configurando um cenrio de arrocho monumental na Europa.
uma crise da prpria estrutura de dominao do capital. Embora no haja alternativa a ela, uma crise de tal profundidade que no se vislumbra qualquer prognstico, com o mnimo de cuidado, de recuperao, mas de longo perodo crtico. Porque, na verdade, esse quadro sinaliza um sistema de metabolismo social profundamente destrutivo, onde a destruio ambiental, a destruio em escala monumental de fora de trabalho, o desemprego e precarizao estruturais so sintomas. E o receiturio utilizado pelos governos pra sair da crise no vai no sentido de sequer minimamente mudar o padro de dominao capitalista, pelo contrrio, acentua as medidas destrutivas, ou seja, mais financiamento ao capital privado, mais penalizao sobre o trabalho, mais recesso. No entanto, ningum pode imaginar que, aumentando a recesso na Grcia, Espanha, Itlia, Inglaterra, v se sair dessa crise. O capitalismo est num buraco muito, muito, profundo.
Outro ponto vital a ser destacado, que tambm vem de 2007, que a crise tem seu epicentro maior nos pases capitalistas avanados. E na medida em que toca o corao da economia capitalista, o desastre muito maior, pois a paralisia de agora no do leste europeu ou do chamado terceiro mundo, mas uma paralisia e crise que devastam parcelas importantes da economia dos pases capitalistas avanados.
Portanto, um cenrio brutal para a classe trabalhadora, para os assalariados e, em qualquer anlise sria, no se pode deixar de perceber a profundidade da depresso. O Mszros tem dito h vrios anos que o sistema capitalista entrou num longo ciclo depressivo, no qual o epicentro da crise pode mudar, mas num quadro tendencial crtico, e que no vivenciaramos mais aqueles perodos de expanso e crise, as chamadas fases cclicas, pois adentramos numa linha declinante, onde um pas ou outro ora sobe, ora decai, configurando uma crise muito mais que financeira ainda que o seja fortemente. Tal crise no s do capital fictcio, parte do capital financeiro, mas atinge, pela fuso entre bancos e atividades industriais, a prpria estrutura da acumulao capitalista.
Correio da Cidadania: Em meio a essa crise estrutural, as revoltas populares esto tambm se espalhando mundo afora. As manifestaes tm ocorrido em escala crescente nos citados pases capitalistas avanados, alm da frica, Oriente Mdio, Chile, China... H relao direta entre estas revoltas e a crise estrutural capitalista?

Ricardo Antunes: Nas cincias sociais no podemos cravar termos como relao direta, para evitar certa mecanicidade que fizesse as pessoas raciocinarem: toda crise econmica gera crise social e poltica. O que podemos dizer que as exploses que vemos - desde 2005 em Paris, chegando a 2010 na luta dos estudantes da mesma cidade, passando por essa leva de rebelies, que vo dos pases rabes no comeo do ano, os portugueses em maro, os indignados na Espanha semanas depois; antes disso, as exploses em profundidade, com conflagraes e rebelies abertas, na Grcia, e mais recentemente na Inglaterra -, todas elas, tm mltiplos indcios e singularidades. Mas evidente que marcam o momento em que a populao trabalhadora, pobre, os imigrantes, os jovens, os no brancos, desempregados, que no participam da ciranda financeira, esto se rebelando.
Apesar de suas singularidades, essas revoltas tm traos de gnero, gerao, de trabalho, de no-trabalho, so contra concepes xenofbicas e racistas. Todas se manifestam tambm como descontentamento ordem social. No caso grego, isto claro, a sublevao foi contra o governo e suas medidas, que, seguindo o receiturio destrutivo do FMI, impuseram ao pas uma pragmtica que s pode levar a uma destruio ainda maior. Os cortes de salrios, empregos, a perda de equipamentos coletivos e pblicos levaram exploso da revolta. Fica evidente que se trata da populao trabalhadora e estudantil se rebelando contra a receita capitalista e sua incidncia segundo parmetros do FMI. E a rebelio grega vem desde o ano passado, inclusive com levantes mais aguados e paralisaes.
Correio da Cidadania: Ainda que haja um clamor conjunto por democracias mais verdadeiras em todos estes pases submetidos lgica de acumulao capitalista e ciranda financeira, muitas anlises tm sido feitas quanto s singularidades de cada uma destas revoltas que esto sacudindo o planeta, especificamente no que diz respeito s suas origens, ao seu grau de organicidade e conscincia poltica e ao seu enraizamento social. Voc considera relevante ressaltar estas singularidades?
Ricardo Antunes: Se olharmos as revoltas rabes, comeando por Egito e Tunsia, que aconteceram primeiro, claro que elas tm singularidades muito prprias. Todas elas so contrrias s ditaduras das famlias que saqueiam esses povos h dcadas. Na Tunsia, essa revoluo democrtica teve forte apoio dos sindicatos, que conseguiu canalizar as lutas. No Cairo, a praa Tahrir se tornava o espao por excelncia de majestosas manifestaes de massa, que diminuram, mas no cessaram aps a queda de Mubarak. Como se sabe, no Egito a resoluo da crise veio pelo alto, feita pelo ncleo duro das foras armadas, pagas e sustentadas pelo governo estadunidense. Por isso ainda ocorrem muitas manifestaes de massa no pas, porque a revoluo democrtica se estancou nas foras armadas, sob influncia dos EUA. Mas podemos dizer que nesses pases rabes h uma combinao explosiva entre miserabilidade, pauperismo e ditadura.
Na Europa, o quadro diferente. A democracia formal est sendo questionada pelos levantes populares dos jovens, por serem democracias formais cada vez mais dos ricos, em que os parlamentos esto a cada dia mais dissociados das ruas e lutas populares, completamente corrodos e dominados pelas corporaes, mercado e sistema financeiro, de modo que os governos so fantoches desse sistema financeiro internacional e suas corporaes. E como detonadores principais do movimento, temos a combinao explosiva de precarizao estrutural do trabalho venho dizendo desde 2008 que adentramos em nova era de precarizao estrutural do trabalho em escala global -, cujo trao mais visvel a demolio, eroso, at dos empregos dos imigrantes. Eles so tratados nos pases do norte, que os recebeu h 20, 30 anos pra fazer o trabalho sujo, como concorrentes, pois agora os ingleses, espanhis, portugueses, franceses, esto querendo o trabalho sujo. E assim se amplia a onda xenofbica, comeando um processo de represso e expulso dos imigrantes.
Nesse sentido, podemos citar Portugal, maro de 2011: o grande movimento da gerao rasca de uma gerao encalacrada, enrascada, sem perspectiva; imigrou, mesclou-se com o jovem portugus e sabe que o seu futuro imediato, estudando ou no, na melhor das hipteses, o emprego precrio, na mais plausvel, o desemprego. Ele olha para o pai e a me, estudados, e v todos precarizados. E quando l estive pude presenciar duas manifestaes importantes: uma da chamada gerao rasca, convocada pelos imigrantes, com mais de 200 mil pessoas em Lisboa, alm de outras cidades; e poucas semanas depois, uma das centrais sindicais, que protestaram contra a precarizao dos trabalhadores(as) que ainda tm alguma estabilidade. Ou seja, as duas pontas da Classe-do-trabalho.
J na Espanha, a partir de 15 maio, comearam rebelies em Madrid, Barcelona, de norte a sul. Na Espanha de hoje, o jovem de 18 a 23 anos tem ndice de desemprego oficial de 46%. E lembremos ao leitor que, h 6, 8, 10 anos, se citava o pas como novo colosso europeu, o inchamento do rabo europeu, com o engordamento da cauda ibrica. Resultado: o jovem espanhol sabe que, se estudar, um candidato forte ao desemprego ou, na melhor hiptese, a um emprego precrio, e ainda v seus pais perdendo a sade, a previdncia e os direitos coletivos que tinham no passado. Logo, rebela-se contra uma sociedade capitalista destrutiva que penaliza os jovens em fase de trabalho com 18, 20, 22 anos, quando termina seu ciclo de estudos. Por qu? Porque as polticas recessivas so impostas pelos governos ventrloquos do sistema financeiro internacional dominante.
Dessa forma, claro que h um trao anticapitalista nessas manifestaes. Muitas pessoas dizem que so movimentos sem projeto. Ora, o que a contra-revoluo capitalista, de amplitude global, fez nas ltimas quatro dcadas? Tentar destruir a todo custo o projeto poltico alternativo de esquerda. Isso foi o neoliberalismo e sua brbara prtica.
Assim, evidente que no estamos em poca de grandes projetos alternativos; estamos presenciando a exploso das lutas sociais, dadas por essa nova polissemia do trabalho, das lutas sociais, pela nova morfologia dos organismos representantes desses movimentos sociais. Por isso, na relativa travagem ou limitao de muitos partidos e sindicatos, os jovens foram s ruas, utilizando-se de vrios instrumentos, entre eles a internet, uma forma explosiva de comunicao. Voc pode ter um potencial de mobilizao que no passado os sindicatos e partidos levavam meses para promover. E, na Espanha, os indignados tm uma certeza: no conseguem estudar, e, se o fazem, no tm trabalho. uma gerao rebelde pela negao.
Portanto, trata-se manifestaes de muita singularidade. Os movimentos que defendem os direitos da sexualidade livre repudiaram a presena do papa na Espanha por ele ser uma expresso grotesca de uma concepo que recusa o direito das mulheres ao aborto, veda o sexo livre aos homens e mulheres, de acordo com a vontade de cada um. Enquanto a igreja, com aquela carapaa grotescamente medieval que na Espanha das mais duras, conservadoras, brbaras, nefastas , sofreu o repdio tambm na figura do papa, que precisou mobilizar a sociedade conservadora, conseguindo reavivar geraes ligadas ao franquismo, que no esto mortas.
Correio da Cidadania: E o que dizer da tendncia de revoltas na Amrica Latina?
Ricardo Antunes: No caso da Amrica Latina, podemos ir ao Chile. Estamos vivendo um majestoso movimento estudantil, de massa, com professores e pais de alunos. H anos atrs, recebi um convite para fazer uma palestra em Santiago. Quando l cheguei, lembrando do governo de Allende e a primeira e bela experincia de um governo de inspirao no capitalista, ainda que num processo mais reformista que revolucionrio, imaginava que ainda tivessem preservado algo de suas universidades pblicas. Perguntei se a universidade em questo era da provncia ou federal e, qual no foi minha surpresa, os professores me disseram que era privada. Fiquei pasmo de constatar que, no Chile, o ensino pblico superior tinha sido destrudo e, quando a universidade pblica, cobra to caro quanto as privadas.
Hoje, o que acontece uma famlia remediada, pobre, ter que vender uma casa comprada em 30 anos pra subsidiar o estudo dos filhos. uma tragdia. E depois do fim do Pinochet, a chamada Concertao, a esquerda entre aspas, a esquerda que a direita gosta, foi incapaz de tocar na situao. E temos de olhar para o Chile porque o futuro da universidade pblica latino-americana passa por essa luta enorme dos estudantes de ensino mdio e superior, pais e professores chilenos, comprometidos com o resgate de uma escola pblica, fora dos marcos do privatismo.
Marx j nos alertava que no havia diferena entre um empresrio que monta uma faculdade e outro que monta uma fbrica de sapato. Alis, na Alemanha, o fabricante de salsicha foi muito mais competente que o fabricante de diplomas privados. No Chile, temos uma experincia rica de luta e ocupao de praas pblicas, uma represso violenta de um governo de direita, lembrando que Bachelet tambm reprimiu, com a diferena de que o movimento atingiu uma escalada excepcional agora.
E esses movimentos mostram a transversalidade nas questes de classe. No h nenhum levante no qual os ricos estejam protestando. Quando os brancos esto presentes, so os brancos pobres, com os negros, imigrantes, asiticos, latinos... A primeira manifestao completa do dia 1 de maio nos EUA foi feita pelos imigrantes. Isso porque, por triste curiosidade, o pas que gerou o 1 de maio como dia de luta dos trabalhadores no celebra a data em 1 de maio. E alguns anos atrs, os chamados chicanos, os imigrantes, pararam as ruas de vrias capitais para dizer ns produzimos para os EUA, e no queremos ser tratados como cidados de terceira, quarta, categoria.
Correio da Cidadania: A Inglaterra tem sido palco de um dos mais intensos movimentos na Europa nesse cenrio de protestos, no?
Ricardo Antunes: Nesse cenrio, chegamos Inglaterra. Veja como sintomtico. No primeiro dia de protestos, a mdia tratou as pessoas como manifestantes. A partir do terceiro dia, a mdia mundial comeou a chamar os atos de vandalismo. impressionante. E ainda dizendo que, da direita esquerda, todos condenam as aes ocorridas na Inglaterra. Isso no verdade. Algum pode considerar o New Labour como esquerda na Inglaterra? grotesco! No a esquerda da Inglaterra e to esquerda quanto os governos Lula e Dilma. L at pior, porque o New Labour no tem mais nada a ver com o velho Labour Party, que era trabalhista e reformista autntico. Esse atual, do Tony (ou Tory, conservador, de alma) Blair, o Partido Democrata ingls, partido dos grandes capitais da Inglaterra, tal como a oposio de direita daqui ou os liberais.
O que levou a essa exploso na Inglaterra? Em primeiro lugar, o assassinato de um taxista negro por uma polcia branca, assptica e perversa. Podemos citar a morte do Jean Charles para lembrar a perversidade dessa polcia, que o matou como se fosse um militante da Al-Qaeda, assassinado brutalmente e sem defesa. uma polcia virulenta e, como disse o Tarik Ali recentemente, seria importante contabilizar quantos negros morreram aps serem presos, no caminho do carro da polcia at a delegacia. H uma belssima gravao, colocada no ar pela TV Cultura, de uma entrevista da BBC londrina, na qual se queria induzir um senhor a se posicionar contra as manifestaes. Ele respondeu: Mas o meu filho negro! Ele j foi parado pela polcia pra explicar que no tinha feito nada. Temo pelo filho e pelo meu neto recm-nascido, que vai passar pelo mesmo. Depois, a reprter, muito idiota, como manda o tom da mdia internacional dominante, perguntava: Mas os vndalos....
Correio da Cidadania: Na Globonews, brasileira, houve tentativa idntica de debate, desses que partem das concluses a priori, com o socilogo Silvio Caccia Bava.
Ricardo Antunes: Exatamente. O que a reprter da mdia inglesa, a exemplo de outras, no entende que se vive uma insurreio popular na Inglaterra. um levante que comea com o assassinato de um negro, em um bairro perifrico de Londres, no por acaso onde os negros e imigrantes so maioria, e a partir disso se expande. E a dizem, espantados, mas os jovens vo roubar coisas das lojas, de grife!. Mas queriam que fossem roubar o que? No vivemos na sociedade que cultua as marcas, as grifes? Esse culto ocorre diuturnamente, na TV, no rdio, na propaganda, em mensagens subliminares, nos valores culturais, na diviso entre quem tem o carro ou a roupa de tal marca e quem no tem, determinando se a pessoa ou no bem sucedida... Numa exploso dessa, natural que os pobres, especialmente jovens, que tambm so influenciados por tais valores, queiram tirar sua casquinha daquilo que eles so diuturnamente instigados a ter e que a vida real os impossibilita de realizar.
Correio da Cidadania: Alm do mais, no parece absurdo imaginar que parte deles visou tais lojas e marcas exatamente para externar sua contrariedade a esse modelo de sociedade que os faz ver tudo apenas pela vitrine. Ou seja, aquilo que j se viu em bancos e Mcdonalds e nem to indito.
Ricardo Antunes: verdade, um bom ponto de vista. Tal como j se atacaram outros smbolos. A sociedade do sculo 20 pode ser caracterizada como a sociedade do automvel. H poucos anos, vimos um incndio de automveis que chegou casa de 30 mil veculos na Frana. Agora, vemos carros sofisticados sendo queimados na Alemanha. Por qu? Porque so smbolos de riqueza, que criam essa sensao em relao aos pobres, que no tm sade, no tm mais welfare state, se precisarem de uma cirurgia (o que constatei ao morar um ano na Inglaterra) tm de esperar at um ano, pois o sistema de sade pblica no funciona como antes...
Ao mesmo tempo em que os ricos... Murdoch, seu executivo do News of the World, jornal que fechou aps os escndalos das escutas, tambm era assessor do Cameron! A populao se d conta. O assessor de um magnata corrupto da imprensa est no governo, est mandando! Uma hora tem uma exploso. E vem gente dizer que a esquerda contra. A esquerda no nada contra essas revoltas. Ademais, vo falar que o Guardian jornal de esquerda? Espera um pouco, por favor! H jornais mais e menos conservadores, mas tudo dentro da ordem. Se quisermos saber da esquerda inglesa, temos de olhar as publicaes dos movimentos populares, ambientalistas, o Socialist Workers Party, um partido pequeno, mas de esquerda, dos pequenos ncleos de trabalhadores, que repudiam a tragdia que esse governo branco e nada brando, elitista, perverso, excludente, e que critica as ditaduras do Oriente Mdio. Mas o que fez o governo do branco Cameron? Represso nas ruas, judicirio instrumentalizado para punir at quem mandou uma mensagem por internet que talvez nem fosse sria...
E por que se destaca o Mcdonalds? Porque o exemplo da sociedade fast-food. Tal como os carros no sculo 20 foram smbolos da sociedade tayloriana-fordista, o Mcdonalds exemplo tpico da sociedade do fast-food, do suprfluo, do involucral, do fenomnico, combinando pssima alimentao, pssimo cuidado em sade coletiva etc. etc.
Correio da Cidadania: As revoltas continuam tendo carter classista, porm, no contexto dessa nova morfologia do mundo do trabalho?
Ricardo Antunes: Claro. E o contexto de fundo uma crise estrutural, com precarizao tambm estrutural do trabalho assalariado, em escala vista somente em 1929, 1930, 1931, 1932, no mesmo contexto da crise de 1929.
Ou seja, h uma nova morfologia das lutas sociais, que cria tambm uma nova morfologia nos organismos de representao de tais lutas sociais. E novas formas de manifestao. to verdade que as greves ocorrem intensamente em vrios pases do mundo a China hoje o pas com as mais altas taxas de greve do mundo , como tambm h vrias outras formas de lutas, das quais as rebelies que vemos so expresso.
Outra: elas sinalizam a transversalidade, que mescla classes, de maneira dominante. Repito, no h brancos ricos em nenhum desses levantes. Classe mdia sim, porque a classe mdia europia, pra no falar da rabe, est empobrecida e sem perspectiva futura. Mas no h ricos brancos saqueando nem quebrando nada. Esto em seus bairros fechados, com sua segurana privada.
uma transversalidade que mescla a dimenso de classe com a de gnero. Por exemplo, quando os dois jovens negros parisienses foram mortos eletrocutados ao fugir da polcia, houve aquela enorme rebelio, formada por jovens da periferia, sem documentos, predominantemente homens. Nas manifestaes de hoje, como na Espanha, a mescla entre os dois sexos enorme. No Chile, tambm so estudantes homens e mulheres lutando por algo melhor.
Dessa forma, h uma transversalidade que aglutina classe, gnero, gerao, etnia, sexualidade, entre tantos elementos clivados. E todos eles expressando mais ou menos explicitamente toda a lgica destrutiva da sociedade atual. Em maior ou menor dimenso, exibem cogulos, mesmo que pontilhados, de uma intuio anticapitalista. Em outros setores mais que isso. Nas manifestaes na Frana contra a reforma da previdncia, chegaram a colocar 3 milhes de pessoas nas ruas das grandes cidades com muitos jovens, estudantes, militantes da CGT, o PC francs, CSCT, o Novo Partido Anticapitalista.
Dependendo da realidade, maior ou menor a presena de setores lderes nas mobilizaes. Mas o tom dominante a alta dose de espontaneidade e o descontentamento visceral com a ordem estrutural.
Correio da Cidadania: Voc poderia falar um pouco mais especificamente da China nesse contexto?
Ricardo Antunes: Talvez o nico quadro diferente seja o chins. Imagine que a China, antes da crise de 2007-08, vinha crescendo a 12% ao ano. Ela tem quase 1,5 bilho de habitantes. Hoje a populao pouco superior a 1,3 bilho. Sua fora de trabalho ativa logo chegar casa de um bilho! Quando o pas caiu de 12% para 7% de crescimento, foi uma hecatombe social, pois isso que significa a diferena de 5% a menos de crescimento na China. Lembro que em fevereiro de 2009 a imprensa chinesa falava em 26 milhes de trabalhadores rurais que migraram para as cidades e perderam seus empregos. O que eles vo fazer, voltar pra comuna rural? L no tem mais lugar pra ele. Alm disso, o trabalhador jovem, quando migra do campo para a cidade, se ressociabiliza. Ele passa a viver as vantagens e desvantagens das cidades, sua urbe, os valores urbanos, a internet, os cafs, os bares, as festas populares. Como vo dizer, 10 anos depois, pra ele voltar pra comuna rural? No volta. At porque no tem o que fazer l, pois aquele lugar no tem mais nada a ver com a sua nova subjetividade, florescida nas cidades, no que Mike Davis chama de Planeta Favela. Ele prefere viver no Planeta Favela a voltar calmaria rural.
Por tudo isso, a China tem hoje as mais altas taxas de greve do mundo. O pas sequer tinha uma legislao social protetora do trabalho. Quando o PC chins abriu o pas para a explorao do capital privado transnacional, a que vieram mesmo pra esfolar a pele, o couro e a alma do trabalhador chins. Depois, imagine uma dessas transnacionais escalpelando o trabalhador chins, chegando e falando: Olhem, vou fechar a fbrica, porque a crise me obriga. As rebelies aumentaram. Na poca, a internet at mostrou uma assemblia de trabalhadores chineses em que, no desespero, um operrio decapitou o gestor que anunciara o fechamento da fbrica. Na Frana, h dois, trs anos, tivemos as chamadas greves selvagens, em que os sindicatos fechavam as fbricas com os gestores dentro e exigiam novas negociaes.
H um cenrio muito heterogneo de lutas. E ainda h as greves na Coria, Japo, Filipinas, pases africanos, ou seja, estamos diante de um cenrio muito variado. Mas fundamental perceber como o Habermas estava equivocado, quando em 1980 concluiu e publicou seu livro Teoria da Ao Comunicativa, afirmando que o proletariado europeu tinha se integrado e vivamos uma era de pacificao das lutas sociais. Eu queria ver o Habermas agora. Algum pode imaginar que a Europa vive uma era de pacificao das lutas sociais? O termmetro social aumentou, isso sim.
Correio da Cidadania: Com a tnica no longo prazo, acredita que a atual crise mundial, circundada por macias revoltas populares, possa ensejar perspectivas de surgimento de medidas e movimentos organizados anticapitalistas? Em outras palavras, sementes de uma possvel sociedade socialista podem estar em gestao? De que forma?
Ricardo Antunes: Eu venho dizendo, h muito tempo, que o sculo 21 tem uma semelhana com o sculo 20. No incio do sculo passado, as placas tectnicas se mexeram refiro-me s movimentaes e embates sociais, no geolgicas.
No sculo 20, tivemos a revoluo russa, hngara, levante na Itlia; pelo campo da extrema-direita, o fascismo italiano, o nazismo alemo. Ou seja, as placas em convulso; revoluo e contra-revoluo. No sculo 21, cuja primeira dcada j se foi, as placas tectnicas se mexeram. Mas com uma nova morfologia societal, com um novo desenho de lutas sociais, combinando lutas novas com antigas, mecanismos usados pelo movimento operrio no sculo 20 com revoltas de novo desenho social.
Na Amrica Latina, por exemplo, a Bolvia no mais a mesma coisa. Os indgenas e camponeses bolivianos vivem processo de auto-organizao, que vem sendo conquistado nos ltimos anos. O movimento popular na Venezuela tambm avana no sentido de se reconhecer como agente autnomo, que tem direitos e deve lutar por eles. Na Argentina temos as chamadas fbricas recuperadas, e j existem mais de 200 dessas no pas. Fui conhecer 4 ou 5 delas e vi como so experincias importantes. Na mesma Argentina, tivemos a crise de 2001 e dos anos seguintes, com uma exploso dos movimentos piqueteros, cortando as estradas. E se voc faz isso nas estradas que levam a Buenos Aires, no h circulao nem de mercadorias nem de pessoas. evidente que o movimento piquetero tem trao de oposio circulao de mercadorias; conseqentemente, traos anticapitalistas.
muito importante compreendermos esse desenho todo, pois ele mostra que adentramos numa era de muita ebulio social. Anote a, estamos s no comeo. Afirmo isso desde que escrevi a primeira edio de Adeus ao Trabalho, de 1995, reeditado em 99: adentramos em uma nova era de conflagrao social, de tal modo que o trabalho social concebido no sentido amplo mesmo incluindo os desempregados, precarizados e imigrantes se contrape s foras do capital.
O capitalismo se mundializou e, nesse processo, se mundializaram as lutas sociais.
Correio da Cidadania: At mesmo economistas que se mantm no status quo da ordem capitalista, mas com uma viso mais progressista, dentre eles Paul Krugman, o Nobel da Paz de 2001, Joseph Stiglitz, e o guru da crise de 2008, Nouriel Roubini, descrevem um cenrio catastrfico a decorrer das medidas anti-crise que vm sendo foradas pelo mercado nos pases ricos. Cortes oramentrios to somente reforaro uma recesso global, quando a origem da crise passaria justamente pela percepo da falta de perspectivas de crescimento nos pases ricos, especialmente nos EUA. Neste sentido, estes economistas deixam antever que existem medidas possveis e urgentes que deveriam e poderiam ser tomadas diante da dramtica conjuntura atual, amortecendo, em um primeiro momento, os impactos mais deletrios. O que teria a dizer sobre este enfoque?
Ricardo Antunes: Claro que possvel tomar tais medidas. Se vivemos uma era de exploso e novos levantes sociais, isso muito positivo. Mas ainda estamos aqum de projetos de longo flego, que possam, digamos assim, colocar na mesa outro projeto societal com fora orgnica.
Por exemplo, os movimentos a que me referi tm uma atuao pujante e depois refluem. Assim, uma pergunta importante : como avanar na organicidade, na aproximao e confluncia de tantos movimentos, de modo que no sejam presas da sociedade dita democrtica, mas de fato ditatorial, e das sociedades dos partidos nicos, como so no fundo as sociedades estadunidense e europia? Existem os liberais, os conservadores, os democratas e no tem mais conversa. Quadro, por sinal, muito semelhante ao brasileiro, com o PT e seu arco de foras que vai at a extrema-direita, setores da esquerda reduzidos, o PSDB e o ex-PFL (j que chamar de Democratas provocao aos democratas) e a centro-direita. Em suma, um setor vai da esquerda extrema-direita e o outro vai do centro extrema-direita, de modo que os projetos ficam muito assemelhados.
Porm, que alternativa se pode imaginar? claro que uma alternativa importante aos movimentos de agora aproveitar esse processo. Quando digo que adentramos em nova era de pracarizao estrutural, em escala global, quero expressar que os capitais e suas corporaes esto anunciando o seguinte: daqui pra frente, os direitos do trabalho vo ainda mais para o ralo.
Portanto, trata-se disso: impedir a destruio dos direitos do trabalho. Seja na Argentina, no Brasil, no Mxico, onde, por exemplo, h um movimento de 40 mil eletricitrios que lutam h mais de um ano porque a empresa foi privatizada e eles perderam tudo. A empresa privatizada e o trabalhador perde tudo, elementar. Estive no Mxico trs vezes no ltimo ano e vi movimentos de trabalhadores de vrias localidades do pas na praa do Zcalo, na Cidade do Mxico, denunciando tudo isso, lutando para impedir que seus empregos desapaream. Assim, essas lutas pelos direitos do trabalho so vitais.
Segundo ponto: a luta pela reduo da jornada de trabalho em escala global tambm vital. Porque, ao se reduzir a jornada, juntam-se as duas pontas que compem a classe trabalhadora: os que esto empregados e os que esto desempregados. Reduzindo-se a jornada dos empregados, inclui-se uma parcela importante de desempregados e aumenta-se o tempo de vida fora do trabalho. uma bandeira fundamental. Hoje, poderamos trabalhar duas, trs horas por dia, trs ou quatro dias por semana, se a produo no fosse decidida e voltada tambm para a acumulao destrutiva do capital. Poderamos trabalhar muito menos horas, todos teriam uma jornada pequena e um tempo fora do trabalho que poderia ser efetivamente livre se houvesse rompimento com as amarras do capital e seu mercado.
E ao lutar pela reduo da jornada de trabalho, voc comea a se perguntar: quem controla meu tempo de vida, no trabalho e fora dele?. Depois: produzir o que e para quem?. Quando os movimentos populares, sociais e de trabalhadores comearam a se fazer essas duas perguntas puseram o dedo na ferida.
Claro que governos que, mais ou menos timidamente, ensaiam medidas anti-neoliberais devem ser incentivados, mesmo que tais governos estejam longe de significar algo substancialmente progressista. No entanto, como a maioria esmagadora dos governos pratica a pragmtica neoliberal, a fora que pode realmente erigir barreiras para impedir uma eroso maior dos direitos sociais vem dos movimentos oriundos da classe trabalhadora ou sociais. Como o MST, os movimentos contra a privatizao da gua na Argentina, Uruguai, Bolvia, contra, por exemplo, as siderrgicas e mineradoras que devastam o norte da Argentina, em Mendoza, com essas Vales do Rio Perdido que saqueiam mundo afora, tirando populaes de seus habitats, empurrando-as para longe pra abrir buracos na terra, extrair minrios (commodities) e vender no mercado internacional, enriquecendo brutalmente grupos restritos, antros de bilionrios que saqueiam povos e pases de dada regio por interesses estritamente privados e corporativos.
Essas so bandeiras importantes. Em alguns casos, as lutas esto mais avanadas. Em outros, em um patamar ainda inferior. O Brasil, nos anos 80, j foi linha de frente em lutas sociais; agora est na retaguarda. Enfrentar um governo como o de Lula no foi fcil, porque, para muitos movimentos populares, o Lula ainda algum como ns, mesmo que j tenha mudado de lado h muito tempo. O Lula hoje escolhe onde faz palestra por 400 mil reais, cobra em dlar e ainda deixa o FHC furibundo porque o seu cach trs vezes maior! Esse o cenrio.
E tivemos outros movimentos, como o dos zapatistas, no Mxico, em 1994, depois a Comuna de Oaxaca, ainda que hoje o pas viva uma situao mais difcil. Em compensao, temos avanos no Equador, Bolvia, Venezuela e Argentina. Digo avanos das lutas populares, dos movimentos concretos. Em vrios pases da sia tambm, onde, por exemplo, h uma organizao importante dos trabalhadores na Coria do Sul. No h um dia em que estudantes ou trabalhadores coreanos no infernizam o patronato e a polcia, porque eles reivindicam e so vigorosos em sua luta.
Esse o cenrio que, como venho dizendo, representa o aumento da temperatura social. Estamos perante um trao do capitalismo que temos de viver, analisar e compreender.
Correio da Cidadania: Pra no deixar de fora o Brasil, vemos que, afora o vai e vem das Bolsas, interlocutores oficiais, mdia comercial, ambos reforados pela percepo popular mdia, transmitem a noo de sermos uma ilha de efervescncia com alta dose de imunidade, espera de sediar dois grandes eventos globais! Como est e como dever caminhar, de fato, nosso pas nesta conjuntura?
Ricardo Antunes: , o Brasil ser o escape para toda essa crise, sendo um timo espao para abrir caminho continuidade da expanso e acumulao capitalista, nos marcos que temos acompanhado e comentamos aqui.
Mas indo ao ponto, por que o Brasil cresceu nesses ltimos anos? No foi o Brasil que cresceu, foram os BRICs, ou seja, a China, ndia, Rssia, frica do Sul, e vrios pases latinos como Venezuela, Bolvia, Argentina, entre outros.
Como dito, essa uma crise do norte. A partir de 2008, com a retrao da economia, o governo brasileiro tomou medidas de acelerao do mercado interno e desonerao de setores produtivos. Isso criou uma acumulao no mercado interno, que foi a nossa grande diferena em relao economia global. Entretanto, a devastao ainda ser grande na periferia. Tanto que j podemos notar que os governos tm discursos prontos para medidas impopulares, de conteno. bvio isso.
Como j discutimos em muitas ocasies, os governos FHC, Lula e Dilma, cada um a seu modo, foram agudamente pr-capitalistas, no tocaram em nenhum dos pilares da tragdia social brasileira. A economia fica de joelhos para o agronegcio, as corporaes demitem no primeiro espirro de crise, a desindustrializao enorme.
E quando vier a crise, no ser mais Lula no poder, mas Dilma, que, apesar do capital poltico que herdou, no tem nenhum lastro social.
Valria Nader, economista, editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito jornalista.

Fonte: Correio da Cidadania