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Artigo

O ócio criativo e o tempo livre, uma crítica a De Masi

Publicado: 03 Janeiro, 2011 - 13h30

O desenvolvimento da tecnologia no est servindo para multiplicar o tempo do cio e os espaos de liberdade, mas est multiplicando a falta de emprego e semeando o medo. universal o pnico ante a possibilidade de receber a carta que lamenta comunicar-lhe que estamos obrigados a prescindir de seus servios em razo da nova poltica de gastos, ou devido inadivel reestruturao da empresa, ou apenas porque sim, j que nenhum eufemismo abranda o fuzilamento. Qualquer um pode cair, a qualquer hora e em qualquer lugar. Qualquer um pode se transformar, de um dia para o outro, num velho de quarenta anos (Galeano, 2001, p. 170)

O cio criativo aquela trabalheira mental que acontece at quando estamos fisicamente parados, ou mesmo quando dormimos noite. Ociar no significa no pensar. Significa no pensar regras obrigatrias, no ser assediado pelo cronmetro, no obedecer aos percursos da racionalidade e todas aquelas coisas que Ford e Taylor tinham inventado para bitolar o trabalho executivo e torn-lo eficiente.

Segundo o autor estamos numa poca que corresponde a uma transio que inclui a passagem de atividades fsicas para atividades intelectuais, a passagem de atividades intelectuais repetitivas para atividades intelectuais criativas, a passagem do trabalho labuta para o cio criativo. Um cio criativo que aproxima o trabalho, o estudo e o jogo e que caracterstico da sociedade ps-industrial.

De Masi (2000) aponta a superao do trabalho repetitivo da linha de montagem fordista, agora quase que inteiramente delegado s mquinas. Celebra a libertao do tdio que estas atividades automticas, onde o crebro tinha participao quase nula, causavam aos trabalhadores. Ressalva, porm, que os postos de trabalho que so abolidos pelo progresso tecnolgico no vo ser compensados pela criao de outros postos de trabalho. E que devemos buscar alternativas para sobreviver em uma sociedade sem empregos, embora com riqueza que daria para todos. Critica a viso de alguns polticos que falam da criao de empregos via investimentos, que ele acredita ser uma esperana irreal, dado que as empresas vm diminuindo os investimentos, mesmo recebendo incentivos e outros privilgios. O mercado financeiro o destino dos investimentos.

No final da dcada de 60, Marcuse (1982) j sinaliza que nas novas formas de produo o aparato tcnico se torna o prprio processo de produo dispensando a ao humana e rompendo os laos que prendem o trabalhador mquina.

A automatizao completa na esfera da necessidade abriria a dimenso do tempo livre como aquela em que a existncia privada e social do homem constituiria ela prpria. Isso seria a transcendncia histrica rumo a uma nova civilizao. (Marcuse, 1982, p. 53)

Acrescenta que esta tendncia esbarra na oposio dos movimentos dos trabalhadores que reagem automatizao capitalista que os deixa sem emprego e sem meios de sobrevivncia. Marcuse escreve em poca anterior a derrocada do socialismo real sovitico, numa poca em que a Guerra Fria trazia um certo equilbrio, nem que fosse baseado na competio leste-oeste. Hoje, a alternativa capitalista hegemnica destri uma a uma as conquistas dos trabalhadores duramente extradas do Estado de Bem Estar Social e o desenvolvimento no se traduz em tempo livre, mas sim em desemprego.

De Masi (2000) credita indstria uma supervalorizao do trabalho que fez com que este assumisse um status de dominncia na vida humana em detrimento da famlia, da comunidade, do lazer e de outros valores. Em parte concordo, mas acrescentaria que esta cultura foi criada pelo modo de produo capitalista a partir da dominao pela fome e a necessidade do incio da revoluo industrial. Uma cultura que ainda predomina nos dias de hoje com estes e outros condicionantes e, a concordando com De Masi, perpassa as camadas sociais as quais se destina e influencia outras camadas que no teriam esta necessidade.

Da interseco entre estudo, trabalho e jogo , o autor aponta como sendo a mais perfeita e adequada a posio onde estes trs itens se sobrepem.

Os valores emergentes na nova sociedade incluem a globalizao como contexto.
So globalizados os meios de comunicao de massa, a cincia, o dinheiro, a cultura. [...] A vida inteira globalizada: o mundo inteiro escuta as mesmas canes, assiste aos mesmos filmes e tende aos mesmos consumos. A cadeia McDonald's vende 15 milhes de hambrgueres por dia, todos iguais, nas suas 16 mil lanchonetes espalhadas por oitenta e trs pases. (De Masi, 2000, p. 141).

Uma globalizao que homogeneiza a cultura global. De Masi concorda com este fato, mas no se alonga nos possveis danos que isso causa a culturas diversas. Limita-se a apontar as tendncias e a propor formas de 'adequao' aos novos rumos.

A economia global guiada pelas multinacionais. Elas dispem de sistemas informativos e de lobby muito poderosos, com os quais conseguem ocultar melhor sua poltica. E, alm disso, a trama dos negcios que fazem to emaranhada, que muito pouca gente capaz de descobrir o fio da meada. (De Masi, 2000, p. 143). Coloca a globalizao como a forma contempornea do impulso humano para explorar e colonizar.

Quanto s caractersticas emergentes nesta nova sociedade, o autor cita a intelectualizao, o tempo livre, a emotividade em vez da razo, a desestruturao tempo-espao e a qualidade de vida. V uma tendncia de decrscimo do consumismo e da competitividade e uma progressiva delegao das tarefas de 'baixo nvel' para imigrantes ou para o terceiro mundo.

Em meu entender o cio criativo de De Masi, embora ele fale numa redistribuio de renda via reduo da jornada de trabalho, destina-se apenas a muito poucos trabalhadores do primeiro mundo. Em primeiro lugar, porque parte de uma concesso das empresas que no altera as relaes entre capital e trabalho. Em segundo lugar, toda a anlise de De Masi sobre a produo e os servios levam a crer, embora isso no seja dito, que as empresas necessitam ampliar os mercados para os novos produtos 'imateriais'.

Ora, o consumo de servios e produtos culturais depende, alm da renda, do tempo livre, na seguinte lgica: no h quase nada material a produzir que no possa ser facilmente produzido quase que sem interferncia de trabalho humano. Por outro lado, esgotam-se as possibilidades de 'suscitar novas necessidades' e criar mercados para produtos de curta durao. O sucateamento rpido e outras medidas que intensificam o consumo e fazem funcionar a mquina capitalista podem no estar sendo suficientes para dar conta da necessidade de aumento contnuo da produo.

Os servios liberaram tempo para a produo. Agora a hora da produo liberar tempo para que as pessoas possam consumir os produtos 'temporais' e fazer girar a roda do mercado. Penso que neste sentido que De Masi prope mudanas no funcionamento da produo. No no sentido de subverter o sistema, mas no sentido de manter o sistema funcionando.

Mas de nada adianta: burgueses que se empanturram, domsticos mais numerosos que a classe produtiva, naes estrangeiras e brbaras abarrotadas de mercadorias europias. Nada disso faz escoar as montanhas de produtos que se acumulam, maiores que as pirmides do Egito: a produtividade dos operrios europeus desafia qualquer consumo ou desperdcio. Os industriais, aflitos, no sabem mais a quem apelar, no conseguem mais encontrar matrias-primas para satisfazer a paixo desordenada e depravada de seus operrios pelo trabalho. (Lafargue, 2000, p. 167)

Lafargue aponta de forma irnica e certeira a lgica que move o capital, que no sculo XIX dominava e explorava pela fome e pela misria e que hoje domina e explora pela cultura e pela ideologia.

Nesta perspectiva, o cio criativo surge como um mercado em expanso ou um trabalho sublimado e incorporado, digno de mais uma revoluo do capitalismo na busca de sua preservao.

guisa de concluso ou para quem fala De Masi

O cio criativo me parece escrito no tpico formato dos livros de auto-ajuda. Quase cientfico, utilizando referncias de autores consagrados e de linhas tericas diversas, nem sempre de uma forma que evidencie com correo o contexto das obras. Os textos apoiam-se em conceitos j presentes na literatura, mas com referncias opacas e no identificadas.

No caso de uma leitura crtica como a proposta por um trabalho acadmico tem a virtude de trazer discusso as obras de Lafargue, de Russell e de Marx, para os que aprofundarem os temas. Desconheo as outras obras de De Masi, ento fica difcil avaliar se esta obra segue um padro ou se o formato atende uma estratgia elaborada com uma determinada finalidade.

De certa forma julguei difcil no jogar o livro pela janela uma dzia de vezes e destilar veneno puro no meu texto. Na realidade, o que mais me incomodou foi ter que concordar com o autor sobre certos fatos ou tendncias. No que eu concorde com a sua anlise ou prognstico, mas quanto ao fato em si no h como discordar. Por exemplo, o nosso progressivo status de 'audincia'; a nossa posio de consumidores de conhecimentos; a nossa impotncia diante da dominao que se v gravada no corao das pessoas. Uma dominao mais eficiente que a fome.

O incremento da produo, das cincias, das tcnicas revela necessidades e capacidades desconhecidas, faz refletir um espectro suntuoso de gostos, de criaes, de diferenas; mas a reificao e a alienao fazem da humanidade uma plebe perplexa diante do espetculo de seus prprios fetiches. A produtividade aumentada do trabalho libera tempo para a criatividade individual e coletiva, propcia a novas formas de convvio e lucidez; mas a medida 'miservel' de qualquer riqueza e de qualquer troca pelo tempo de trabalho abstrato transforma a incrvel liberao potencial em desemprego, em excluses, em misria fsica e moral. (Bensade, 1999, p. 99).

Qual a sada? Bensad (1999) aponta a sada de Marx que envolve uma redefinio dos critrios do progresso, a considerao de critrios que priorizem o enriquecimento do indivduo e da espcie, que suprimam o trabalho alienado e que valorizem as relaes entre as pessoas.

De Masi no aponta sadas, apenas descarta alternativas, entre outras: o socialismo porque no sabe produzir, o capitalismo por no ser capaz de distribuir o que produz. Acena de leve com o 'modelo grego', o que por si s j preocupante. A sua proposta de reduo da jornada de trabalho mais tcnica que poltica, no altera o funcionamento do sistema produtivo na sua essncia e no vem acompanhada de uma teoria consistente que lhe d sustentao.

Basta analisar a maioria dos textos de De Masi, citados anteriormente para ter claro que seu discurso e anlise correspondem s sociedades 'avanadas'. A elas se destina o cio criativo. Uma possibilidade que De Masi visa ampliar para mais trabalhadores pela reduo da jornada de trabalho, ficando a produo e os servios de nvel mais baixo para os pobres e o terceiro mundo.

E, no meu entender, De Masi fala para as empresas. A quase totalidade de seus exemplos inclui as empresas e as suas necessidades, chegando a considerar a dinmica da sociedade ps-industrial como uma guerra entre empresas (DE MASI, 2000, p. 129). Alerta para o estrangulamento dos mercados de consumo, alerta para o 'tempo livre' como tempo para consumir que a empresa paga para receber de volta. Uma mensagem que vem vestida como proposta revolucionria e, para isso, De Masi chega a aproximar Lafargue de Taylor.

De Masi fala o que todos querem ouvir, fala de uma sociedade ideal onde jogo, trabalho e estudo se misturam. Usa as palavras de ordem dos discursos atuais como solidariedade, hospitalidade, qualidade de vida. E acena com a esperana que a riqueza e o desenvolvimento por 'transbordamento' possam acabar atingindo at as regies mais pobres. Uma cantiga sedutora como as que eram ensinadas s crianas no sculo XIX, para que enfrentassem uma jornada de 12h de trabalho nas fbricas.

*Ps-Graduando em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Fonte: Suzana de Souza Guitierrez* - Portal Vermelho