H um ano, o kirchnerismo vivia uma situao complicada. O ento candidato do oficialismo e favorito sucesso presidencial, Nstor Kirchner, falecia e deixava muitas perguntas. Seria possvel uma volta de setores ainda mais reacionrios? Seria Cristina Fernandes de Kirchner capaz de preencher esse vcuo e se reeleger? A resposta, um ano depois, veio com as eleies do dia 23 de outubro, em que a candidata do Partido Justicialista (PJ), o aparato partidrio mais forte da Argentina, varreu sem dificuldade a oposio direita e esquerda, com uma vitria galopante, j no primeiro turno (ver quadro com porcentagens). Foi a maior diferena entre um primeiro e segundo colocado desde a redemocratizao do pas, em 1983.
So muitos os fatores que explicam o triunfo do kirchnerismo no pas. Um deles que Ao longo do ltimo ano prvio s eleies, os partidos de oposio de direita no foram capazes de sair com uma candidatura nica.
Outro, e dos mais bvios, que, durante suas gestes (2003 a 2007 com Nstor, e Cristina de 2008 a 2011), o pas conseguiu sair da profunda crise econmica e poltica que havia entrado em 2001. A Argentina se recuperou dos ndices baixos de crescimento, que chegou a ser negativo em 2002 (-14%) para, a partir de 2003, crescer a ritmo chins, com taxas que variam de 7 a 9% ao ano, o que deve se repetir em 2011.
Crise de 2001Os indicadores sociais tambm apresentaram melhora. De acordo com dados da Cepal, 45% dos argentinos estavam abaixo da linha da pobreza em 2002. Em 2009 esse nmero foi para 11,9%. O problema que como o governo federal intervm no instituto que faz a medio dos ndices (o INDEC, equivalente ao que no Brasil seria o IBGE), muitos afirmam que esse ndice de pobreza maquiado e sugerem um nmero mais alto, prximo aos 30%, como mostra o estudo Sobre o trabalho decente, feito pela Central de Trabalhadores Argentinos (CTA).
Outro fator importante a se levar em conta que, historicamente, a Argentina sempre teve alguns dos ndices de pobreza e desigualdade mais baixos do continente, sobretudo na primeira metade do sculo XX at a dcada de 1970, quando a ditadura militar comeou a desmontar o modelo nacional e popular, de poltica industrialista e pleno emprego, plasmado pelo primeiro peronismo (1945-1955). As dcadas de ditadura e de poltica neoliberal, intensificada nos governos de Carlos Menem (1989-1999, tambm do Partido Justicialista), acabaram tendo como resultado a crise de 2001.
Para Nora Ciapponi, militante da Frente Popular Daro Santilln, difcil definir o kirchnerismo se no se toma em conta a rebelio de 2001. Na minha opinio, o 2001 um ponto de inflexo fundamental, opina. Para ela, ainda que a rebelio argentina na qual 40 pessoas foram mortas na represso policial entre dezembro de 2001 e junho de 2002 tenha sido, por um lado, muito importante para definir os rumos do pas, por outro, no foi capaz de construir uma alternativa superadora esquerda. Sobre essas contradies surge o kirchnerismo. um filho, com suas virtudes e suas deformidades, do prprio processo.
AntineoliberalAssim como em outros pases do continente onde a ressaca neoliberal bateu forte, a populao argentina passou a rechaar polticas de cunho antipopular. Em outros pases tambm houve rebelies, mas aqui teve uma envergadura muito profunda. Isso explica as caractersticas dos processos posteriores de cada pas. Estava lendo que, por exemplo, no Brasil, o governo no est sempre de olho em qual vai ser a reao popular, mas aqui sim. Cada medida que tomam, tm que medir que resposta vai ter, afirma Nora.
Por isso, coube as gestes Kirchner concertar os estragos da poltica neoliberal, ainda que, tanto Nstor como Cristina, no se posicionassem de forma crtica ao menemismo na dcada de 1990. O modelo de governo na provncia de Santa Cruz [estado governado por Nstor Kirchner entre 1991 e 2003] e o governo de Menem no tinham contradies reais. Kirchner surge em meio a uma rebelio que o obriga a ter um discurso e uma ao que leve em conta o que o povo havia derrotado nas ruas. E para isso teve uma grande habilidade, completa Nora.
Desde ento, a gesto Kirchner buscou atuar em duas frentes: recomps o crescimento econmico que favoreceu grandes grupos econmicos, sobretudo aqueles vinculados ao agronegcio e, ao mesmo tempo, fez algumas concesses aos setores populares, com uma poltica de ampliao de crditos, criao de empregos e elaborao de planos sociais de compensao social.
EmpregosO governo de Cristina Kirchner se autointitula nacional e popular, em uma clara tentativa de se vincular ao primeiro peronismo e se afastar do outro peronismo, o que levou a cabo, com Menem, um dos projetos neoliberais mais agressivos do continente. Um dos ndices que gostam de exibir o de desemprego que, de acordo com dados oficiais de 8,3% no perodo entre 2007 e 2010. Entretanto, no estudo Sobre o trabalho decente, feito pela CTA, publicado em junho deste ano, desvendou o que h por detrs dessas cifras. Afirmam que a maior parte dos postos de trabalhos criados informal e que a taxa de precarizao no pas de 53%.
Alm disso, o trabalho aponta para alguns dos limites do atual governo que talvez no tenham aparecido ainda. Para a CTA, hoje h um estancamento na criao de empregos. Durante o perodo 2007 2010 se observa um estancamento da taxa de emprego, que cresceu nesse perodo s 1% passando de 42,1% para 42,5% da populao. Se levado em conta as taxas de crescimento populacional, o aumento quase nulo, afirma a CTA.
Este certamente ser um dos desafios para Cristina Kirchner nos prximos quatro anos, junto com os problemas relacionados questo do acesso a terra por parte dos povos indgenas e camponeses, e acesso moradia, eixos em que aparece a esmagadora parte dos conflitos sociais.
Poltica social
Alm de basear seu modelo de desenvolvimento econmico na produo e exportao de produtos primrios (50% das exportaes do pas so desse setor e 70% da rea cultivada dedicada ao plantio de soja), o governo de Cristina Kirchner parece ter aprendido outra lio com o governo brasileiro: as polticas assistenciais. Assim como no Brasil, eram prticas j executadas por seus antecessores, mas que foram ampliadas significativamente. No caso argentino, os principais so a Assignao Universal por Filho, o Plano Argentina Trabalha e Famlia Argentina (que inclui distintos programas).
Uma evidncia da importncia que o governo de Cristina passou a dar a essas polticas foi o aumento do oramento do Ministrio de Desenvolvimento Social, responsvel porimplementar essas polticas. De 3.2 bilhes de pesos em 2004, foi para 7.5 bilhes em 2008, e saltou para 19 bilhes em 2011, seis vezes o valor de 2004, em parte devido criao da Assignao, em novembro de 2009.
Para Nora Ciapponi, essas polticas no atacam a fundo as desigualdades sociais e a pobreza, embora apresentem melhoras na vida da parcela mais pobre da populao. Em sua opinio a vitria de Cristina mostra que depois do desastre de 2001, as pessoas sentem que a situao econmica do pas melhorou. Entretanto, avalia, as camadas populares ainda ficam com uma parte muito pequena da riqueza gerada pelo pas. Neste modelo, quem leva a maior parte do bolo o agronegcio e agroindustriais, afirma. E esse modelo no capaz de reverter os problemas estruturais que gerou o projeto neoliberal.
MaioriaO sucesso dessa forma de governar no ficou demonstrado apenas com a vitria por ampla diferena no primeiro turno de Cristina, mas sua base de apoiadores dentro do PJ ganharam em quase todas as disputas para governador e o oficialismo tambm obteve maioria nas duas casas do Congresso Nacional. A Frente para a Vitria, coligao de Cristina, conquistou 32 lugares no Senado, entre eles, Carlos Memem, pelo estado de La Rioja. Somando os aliados mais prximos, soma os 37 necessrios para as aprovaes, dentro o nmero de 72 cadeiras da Casa. Na Cmara de Deputados, tambm obteve a maioria.
Fonte: Dafne Melo, de La Matanza (Argentina) - BRASIL de FATO