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Livros discutem escravização contemporânea no trabalho doméstico desvalorizado

Programação de lançamento dos dois livros foi ampliada por debates, troca de informação e depoimentos pessoais sobre a exploração desumana do trabalho doméstico em condições análogas ao trabalho escravo

Publicado: 26 Janeiro, 2023 - 10h21 | Última modificação: 26 Janeiro, 2023 - 10h48

Escrito por: CUT Sergipe

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Com jornada exaustiva, em condição degradante, servidão por dívidas ou trabalho forçado, 38 trabalhadoras domésticas foram resgatadas da escravidão entre 2017 a 2022, segundo dados da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

Para ampliar o debate sobre esta temática e provocar políticas públicas, a professora Shirley Andrade lançou o livro ‘A mulher negra no mercado de trabalho: condições escravistas das trabalhadoras domésticas’, na sede do Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos (SINDOMÉSTICA), em Aracaju, no último sábado, dia 21 de janeiro.

Vencer a cultura escravocrata brasileira que legitima a exploração do trabalhador como se ele fosse ‘uma coisa’ e não uma pessoa com direito à vida e à dignidade humana é fundamental para o combate efetivo ao trabalho escravizado contemporâneo, defendeu a autora. Assim, o lançamento do livro da professora Shirley contou com um dia de programação intensa, marcada por vários depoimentos de trabalhadoras domésticas, de profissionais do Direito, como a procuradora do trabalho Lys Sobral e o Procurador do Trabalho Manoel Adroaldo, lideranças sindicais, além da divulgação do Disque Denúncia 100 – que todos devem divulgar e utilizar para denunciar casos de exploração em condições análogas ao trabalho escravo.

A advogada Cristiana Santana também lançou o seu livro “Afeto e Solidariedade no Trabalho doméstico: estudo de caso ‘doméstica de criação’”, sobre a história de vida da trabalhadora doméstica sergipana que vivia e trabalhava em um sítio desde os 10 anos de idade, sem direito a descanso, a jornada de trabalho, sem receber salário e onde sofreu violências físicas e assédio moral constante desde a infância. Já adulta, quando foi à Justiça para cobrar seus direitos, perdeu a causa e ainda foi condenada por litigância de má fé, pois a juíza afirmou que ela ‘viveu de caridade’.

"O caso me chocou bastante, a trabalhadora foi muito explorada e teve uma vida muito difícil. Ela apanhava de bengala, de pau, foi explorada no trabalho infantil, não teve condições de estudar. Depois de tudo o que passou, ela preferia viver com a família dela, mesmo passando fome, do que ter a vida que teve. Eu defini um nome 'doméstica de criação' para chamar a atenção e problematizar esta realidade que já foi muito comum e que precisa ser denunciada”, observou Cristiana.

A advogada, autora do livro, explicou o termo ‘doméstica de criação’ porque é a criança ou adolescente que realiza os trabalhos domésticos, mas não é da família porque não recebe herança e nem é tratada como um familiar, pois o lugar destinado a dormir é o ‘quarto da bagunça’, a comida que lhe é servida são sobras, e também não é uma trabalhadora com direitos.

“A doméstica de criação fica num limbo porque a exploração de trabalhadoras domésticas desde a infância é invisível. É um tipo de exploração naturalizada. Por isso é tão necessário conferir visibilidade ao trabalho doméstico regulamentado e com todos os direitos respeitados para que este tipo de exploração não seja mais aceito na nossa sociedade", afirmou Cristiana.

A dirigente da SINDOMÉSTICA, da Fenatrad e da Central Única dos Trabalhadores (CUT/SE), Quitéria Santos, reforçou que também é urgente dar visibilidade ao Sindicato das Trabalhadoras Domésticas como instrumento de luta, de denúncia e de defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas de Sergipe.

“Quero dizer que o SINDOMÉSTICO Sergipe existe. Todas as trabalhadoras precisam conhecer e saber que podem contar conosco. Este é o caminho de lutar pelos direitos trabalhistas e pelo direito à dignidade humana que muitas vezes é violada em situações de violência e assédio”, afirmou Quitéria.

Maria Aparecida, presidenta do SINDOMÉSTICO/SE, completou as palavras de Quitéria. “É preciso de muita união de todas e todos que apoiam a luta das trabalhadoras domésticas. É impressionante como existem advogados, juízes, pessoas que tem o conhecimento devido das leis e que não respeitam nem cumprem os direitos das trabalhadoras domésticas que eles contratam”, criticou Cida.

Importância do Trabalho Doméstico

Para compreender a realidade do trabalho doméstico em Sergipe, a professora Shirley escreveu o livro a partir de várias entrevistas feitas com trabalhadoras domésticas durante a pandemia, quando realizou sua pesquisa de pós-doutorado.

“O trabalho doméstico é o alicerce da nossa sociedade, ele é o que permite que haja geração de riqueza no País. Para que alguém tenha um celular na mão, de alta tecnologia desenvolvida, é preciso de uma mulher para lavar prato, é preciso do cuidado com a geração dos trabalhadores futuros, é preciso de alguém que cuide de sua casa, de suas roupas, de suas coisas…”, afirmou a professora Shirley, autora do livro para explicar que a tal invisibilidade do trabalho doméstico tem a ver com a negação da importância do trabalho doméstico que é fundamental para toda a sociedade, para trabalhadores de todas as profissões.

Há mais de uma década Shirley trabalha com a temática do trabalho escravo, e ao chegar em Sergipe a professora estranhou a informação de que não havia trabalho em condições análogas ao trabalho escravo em Sergipe, mas ao criar o Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão Trabalho Escravizado Contemporâneo (GETEC) na UFS, percebeu em pouco tempo de pesquisa, em viagens e entrevistas que havia trabalho escravo, mas Sergipe permanecia como o único estado brasileiro a não ter registro de resgate em suas terras nos dados do Ministério do Trabalho.

“Aí começamos a escrever vários artigos, apresentado a autoridades competentes, contando essa situação de Sergipe. Somente em 2021, tivemos a primeira fiscalização do grupo móvel de fiscalização onde dois trabalhadores foram resgatados de uma pedreira em Canindé de São Francisco, apesar de que, já em 2014, o Ministério Público do Trabalho fez o resgate de 44 trabalhadores na Fazenda Taquari, em Capela”, explicou a professora Shirley.

Apesar de não haver resgates em Sergipe até então, a professora observou que os sergipanos eram escravizados em outros estados, todavia 99% eram homens. Daí a importância de direcionar as pesquisas para a questão de gênero e a escravidão. Foi então que se iniciaram as pesquisas com as trabalhadoras domésticas.

"A partir das entrevistas com as trabalhadoras domésticas, descobrimos trabalhadoras com jornada de 24h por dia, pois cuidavam de idosos e de crianças pelo dia e à noite dormiam no quarto sempre atenciosas à necessidade das pessoas cuidadas. A Convenção 189 da OIT considera que quem está à disposição do patrão está cumprindo jornada de trabalho. Houve trabalhadora que era 'emprestada' para limpar a casa dos outros parentes sem ganhar nada mais em troca; e muitas trabalhadoras com restrição ao acesso de água potável para beber ao longo da jornada de trabalho; trabalhadoras obrigadas a comer o resto da comida das patroas, e passaram fome e humilhações no ambiente de trabalho”, revelou a professora Shirley.

Trabalho em condições análogas ao Escravo na atualidade

Lys Sobral, procuradora do Trabalho (CONAETE), explicou que na atualidade o conceito de escravidão não tem relação com aprisionamento da pessoa através de correntes.

"Você escraviza uma pessoa quando tira dela o mínimo que que ela poderia ter como ser humano. Por isso é preciso estar atento às condições atuais de exploração dos trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas ao trabalho escravo, que depende de jornada exaustiva e trabalho degradante, a exemplo das pessoas que trabalham por comida ou também estão mantidas num regime de servidão por dívida”, revelou a procuradora do Trabalho.

Maria Eliete Santos de Jesus, da Auto-Organização de Mulheres Negras Rejane Maria e do MOTU, falou sobre a autoestima da mulher negra, uma história de muitas dores, marcada pelo racismo brasileiro e que precisa ser mudada.

“Aos 13 anos eu passei por isso, exploração do meu trabalho, fome, maus tratos. Aos 49 anos ouvir relatos como estes é muito doloroso. Isso não é normal, não pode ser aceito como normal. Precisamos saber onde estamos errando e por que esta realidade não muda? Como teremos autoestima comendo resto, sendo chamada de feia, dormindo no quartinho da bagunça?”, registrou a Terapeuta que na adolescência fez bicos como trabalhadora doméstica.

Com 81 anos de idade, a senhora Maria Francisca dos Santos que atuou muitos anos como trabalhadora doméstica, e que ainda cuida dos afazeres domésticos de sua casa e da casa de seu filho revelou que fez questão de participar da atividade de lançamento do livro no sindicato.

“Tudo que tem aqui no sindicato, eu faço questão de participar. E digo as trabalhadoras que venham para o sindicato porque é o lugar onde vão encontrar amparo e proteção dos seus direitos”, afirmou a senhora Maria Francisca.

A programação também contou com outras palestras como a Dinâmica de Grupo, organizada pela dirigente Quitéria Santos; a palestra do servidor do INSS, Márcio Cardoso, e também a roda de leitura dos livros lançados com os comentários do procurador do Trabalho, Adroaldo Bispo.

Além de Quitéria Santos, também assistiram as palestras e debates na sede do SINDOMÉSTICA/SE, os diretores da CUT/SE Ivan Calazans, Joelma Dias, Cláudia Oliveira e João Fonseca.

As palestras realizadas no turno da manhã foram transmitidas ao vivo pelas redes sociais da CUT/SE. Acesse o Facebook e o Instagram e confira parte do evento que foi transmitido ao vivo.