O massacre de Port Said: Muito mais do que futebol
Tudo começa no dia 1 de fevereiro, quando pelo menos 74 morreram e mil ficaram feridos. Talvez até mais. Este foi o resultado do confronto entre as torcidas do Al-Ahly e do Al-Masry, na cidade egípcia de Port Said, uma das mais importantes do...
Publicado: 26 Março, 2012 - 14h38
Escrito por: Central Única dos Trabalhadores de Sergipe (CUT/SE)



Tudo comea no dia 1 de fevereiro, quando pelo menos 74 morreram e mil ficaram feridos. Talvez at mais. Este foi o resultado do confronto entre as torcidas do Al-Ahly e do Al-Masry, na cidade egpcia de Port Said, uma das mais importantes do pas. Por confronto, neste caso, preciso imaginar um massacre onde uma torcida perseguia a outra, em pnico.
Mas a confuso no se tratava do resultado apenas da rivalidade entre as duas equipes, ao contrrio do que foi veiculado pelo governo egpcio, interessado em abafar ao mximo o caso. Ao mesmo tempo em que h dvidas sobre se se tratava efetivamente de torcedores do Al-Masry ou de agentes infiltrados e marginais contratados.
No dia 25 de janeiro, a Revoluo Egpcia havia completado um ano, e a mobilizao nas ruas do Egito e em especial na Praa Tahrir, no Cairo, continuavam fervilhando. Os manifestantes conseguiram derrubar o ditador Hosni Mubarak, mas acabaram sendo forados a engolir uma junta militar que reprime a populao com a mesma ferocidade do regime anterior. Para complicar a situao, a economia egpcia entrou em colapso com os contnuos protestos e com o clima de terror, alm da violncia ter sofrido uma imensa escalada.
Segundo o ativista brasileiro Aldo Sauda, que h meses est no Cairo acompanhando o processo revolucionrio e participando ativamente da linha de frente dos protestos na Praa Tahrir, epicentro da Revoluo, trata-se de um caso claro de manipulao da temida SCAF, o Conselho Supremo das Foras Armadas do Egito, que tomou o poder aps a deposio de Mubarak, formando um conselho militar que mantm insatisfeito o grosso dos manifestantes.
A SCAF o resultado da presso dos militares que por anos sustentaram o regime de Mubarak e que hoje buscam manter seu poder sobre o pas.
Eleies foram realizadas no Egito, mas boicotadas por grande quantidade dos milhes de manifestantes egpcios, na sua maioria jovens, que no concordaram com o processo organizado por militares, e que viu a formao de uma maioria islmica composta pelos moderados da Irmandade Muulmana e por Salafistas.
Durante os protestos na praa Tahrir os chamados Ultras ou UA07 - torcedores fanticos, neste caso do Al-Ahly - comparecetam em peso e eram responsveis pelas msicas mais ofensivas ao regime, como explica Sauda. O futebol ficou em segundo lugar ao passo que torcedores Ultras do Zamalek os Cavaleiros Brancos -, principal rival do Ahly, se juntaram aos protestos, pacificamente cantando junto aos torcedores do time rival.
A unio contra o regime foi tanta que ambas torcidas Ultras se fundiram e passaram a se chamar "Ultras Freedom", ou Ultras Liberdade. Ao contrrio do senso comum, os Ultras de ambas as torcidas, e em especial do Al-Ahly so relativamente pacficos e extremamente politizados. Apesar de alguns soluos, como chama o jornalista Mohamed El Dahshan os conflitos espordicos e tpicos em estdios egpcios, nunca um episdio de tamanha violncia havia ocorrido. Algo est errado, diz o jornalista.
Torcidas organizadas
No fosse a presena aguerrida e radical de diversos membros Ultra no Cairo, possvel que a Revoluo no tivesse se sustentado por tanto tempo e a populao tivesse resistido de forma to tenaz. As torcidas organizadas radicais no Egito no so antigas, mas nasceram em grande parte do descontentamento com o regime e como vlvula de escape frente insatisfao da juventude.
Cantos como "Abaixo o Regime Militar" ou "O povo quer que o Marechal seja executado", em referncia ao Marechal Tantawi que comanda o regime militar, eram lugar comum entre os diversos gritos e palavras de ordem da torcida do Al-Ahly em Tahrir e no estdio de Port Said. Pichaes Pichaes com a insgnia ACAB (All Cops Are Bastards todos os policiais so bastardos) so vistos lado a lado com slogans revolucionrios em cada espao vazio na cidade do Cairo.
A jornalista Dima Khatib comentou, em seu blog e nas redes sociais, que torcedores Ultras do Al-ahly contavam msicas ofensivas contra o regime militar dentro e fora do estdio e as imagens do momento do massacre denunciam a falta de ao da polcia, que no se moveu para defender os torcedores e jogadores do Al-Ahly.
Massacre arquitetado
A tese da conspirao e de um massacre arquitetado pelo regime se sustenta tambm pela notada ausncia do governador de Port Said e de seu chefe de segurana a um jogo em que normalmente compareceriam, denunciou o parlamentar Mohamed Abou Hamed televiso egpcia. Que existe rivalidade entre as torcidas Ultra do Al-Ahly e do Al-Masry no novidade, h alguns anos a torcida do segundo roubou alguns trofus da sede do primeiro. Mas, em geral, a violncia tem sido localizada e contida.
Ativistas egpcios no descartam que torcedores do Al-Masry tenham sido pagos para agir ou mesmo que provocadores do exrcito tenham incitado a torcida a partir para cima dos Ultras do Al-Ahly, mas em meio a uma situao convulsionante toda opinio to vlida quanto a outra.
Torcedores do lado de fora do estdio acusaram a polcia de ter fechado diversos portes, dificultando a fuga da torcida que, apesar da maior do pas, era minoria em Port Said. Segundo o jornalista Mohamed Elmeshad, os procedimentos de segurana padro para jogos do campeonato egpcio no foram seguidos e em dado momento os policiais que deveriam permanecer no estdio simplesmente sumiram, e ao passo que os portes ao lado da torcida do Al Ahly permanecerem fechados, impedindo a fuga dos torcedores, portes foram abertos do outro lado do estdio por agentes de segurana para permitir a entrada de provocadores.
Parte da populao de Port Said colaborou no salvamento das vtimas do massacre, usando mesmo seus carros pessoais para levar feridos a hospitais e doando sangue e acusando a SCAF de ter arquitetado o massacre. Sobreviventes denunciaram ter ouvido dos atacantes que estes batiam para lavar a honra da SCAF e para dar uma lio aos que se revoltam contra o regime. Para o ativista brasileiro Sauda, trata-se de uma punio coletiva inequvoca.
Em sua pgina oficial no Facebook, os guias Verdes, torcida Ultra do Al Masry, declararam ser comprometidos com o apoio pacfico ao seu time e que fez o possvel para prevenir a infiltrao de provocadores em suas fileiras. A torcida denunciou, porm, terem sofrido a aproximao de provocadores antes do jogo com a inteno de promover a violncia e mesmo sequestrar jogadores do Al Ahly. Os Ultras do Al MAsry denunciaram tambm que algumas pessoas chegaram a ameaar vendedores e outros torcedores para conseguir ingressos para a partida.
A torcida do Al Masry declarou que nosso grupo no tem nada a ver com o que aconteceu. Iremos suspender nossas atividades em respeito aos que morreram pelo Egito e tambm prometeram participar dos protestos contra o regime ao lado das demais torcidas Ultra organizadas.
Dezenas de pessoas foram asfixiadas, pisoteadas ou mesmo espancadas at a morte, no campo e nas arquibancadas. Outros acabaram, apavorados, pulando das arquibancadas e morrendo em consequncia. Os jogadores do Al-Ahly foram forados a correr e se esconder nos vestirios, onde ao menos um torcedor morreu enquanto tentava desesperadamente escapar da violncia.
O campeonato egpcio foi suspenso, algo que, segundo muitos egpcios, deveria ter sido feito h tempos, pois no h condies de segurana no pas para evitar tragdias como as de Port Said que, a bem da verdade, pode ter sido minuciosamente planejada. O prefeito de Port Said renunciou e ao menos dois chefes de polcia foram presos, alm da cpula do futebol do pas ter sido destituda, no que, para muitos, no passa de uma cortina de fumaa frente ao massacre arquitetado pelo governo que agora encobre seus rastros.
Casos semelhantes
Casos de violncia no esporte so comuns. Torcidas adversrias se degladiam e se degladiaram em diversos pases por razes polticas e existe clara tenso entre torcidas pelo mundo. O Real Madrid em especial sua torcida de cunho fascista Ultra Sur - vive em constante tenso com torcedores do Herri Norte do Athletic de Bilbao e com torcedores do Barcelona, ambos times representando minorias tnicas e nacionalistas da Espanha.
Honduras e El Salvador j sustentaram batalhas violentas no futebol em 1969, prenncio de uma guerra que vitimou ambos os pases na chamada Guerra do Futebol que durou apenas quatro dias (14 a 18 de julho de 1969) e deixou quase 2 mil mortos.
Em 1990, as torcidas do Dnamo Zagreb e Estrela Vermelha de Belgrado acabaram em violento conflito, denunciando o conflito que teria incio fora dos campos no ano seguinte, quando da separao da Crocia e Eslovnia da Iugoslvia.
Na Inglaterra, comum a violncia dos chamados Hooligans, ao passo que Celtic (catlico) e Rangers (protestante), da Esccia, costumam se enfrentar por razes religiosas.
Por outro lado, o futebol tambm palco de conciliaes, de jogos que celebram a paz e mesmo jogos que celebram a vontade de naes de ganharem autonomia, como desafio a pases maiores. A seleo Basca e a seleo Catal, no reconhecidas pela Fifa, mas que anualmente realizam jogos para garantir a visibilidade de suas causas, ou a seleo do Tibet, que joga em desafio ao domnio chins.
Mas a violncia vista no Egito no foi religiosa e tampouco reflexo de animosidades e diferenas insuperveis entre duas torcidas, mas, como denunciam ativistas, jornalistas e especialistas, de um acerto de contas entre um regime militar e manifestantes pr-democracia.
Trs jogadores do Al Ahly (Mohamed Aboutrika, Mohamed Barakat e Emad Moteab), chocados com os acontecimentos, decidiram se aposentar.
E a quem interessar possa, o resultado do jogo foi 3 a 1 para o Al-Masry.
Fonte: Raphael Tsavkko Garcia - BRASIL de FATO