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O silêncio internacional diante das ditaduras

“É a economia, estúpido!”. A famosa frase de James Carville, assessor de Bill Clinton durante a campanha eleitoral que o levou à Casa Branca em 1992, serve para responder as perguntas que muitos fazem. Por que o insuportável silêncio...

Publicado: 16 Março, 2011 - 13h53

Escrito por: Laisa Galdina

a economia, estpido!. A famosa frase de James Carville, assessor de Bill Clinton durante a campanha eleitoral que o levou Casa Branca em 1992, serve para responder as perguntas que muitos fazem. Por que o insuportvel silncio internacional diante das legtimas rebelies de populaes que exigem liberdade, dignidade econmica e pessoal e democracia? Por que se tem tolerado durante dcadas os abusos aos direitos humanos das ditaduras aliadas do Ocidente que tm gerado a atual revoluo que percorre o mundo rabe, desde Marrocos at a Arbia Saudita? O que explicava as visitas de Estado a regimes ditatoriais e cleptocracias, os abraos e beijos com os autocratas rabes, as bnos a sistemas de governo em desacordo com a legalidade? A resposta so bilhes de dlares e uma estabilidade regional que tem beneficiado a Europa e os Estados Unidos e seu principal aliado regional, Israel, em troca da insegurana das populaes rabes.

O mrito dos manifestantes rabes que esto colocando em srios apertos, quando no derrubando, seus regimes enorme. No s enfrentam um aparato de segurana repressor o que os condena, em caso de fracasso, a serem perseguidos e provavelmente massacrados mas tambm ao mundo inteiro desde o momento em que os ditadores contra quem se levantam esto ligados com o resto dos pases mediante vnculos difceis de se quebrar: contratos comerciais que no entendem de ideologia nem de moral.

Essa a razo pela qual os documentos das ONG denunciando torturas, represso, ausncia de liberdades e eleies arranjadas nunca produziram a mais mnima sombra sobre os regimes amigos: Arbia Saudita, Arglia, Bahrein, Egito, Emirados rabes, o atual Iraque, Jordnia, Kuwait, Lbia, Mauritnia, Om, Qatar, Tunsia, Imen, Sudo, Marrocos... De fato, consultando os informes redigidos pelos escritrios comerciais espanhis nos citados pases ningum desconfiaria da legitimidade dos regimes e, sobretudo, ningum duvidaria dos proveitosos negcios que trazem aos Estados Unidos ou Europa. custa, isso sim, dos excessos que se cometem contra suas populaes. Este um resumo do que queriam ver nossos governos no Oriente Mdio e no norte da frica e do que viam seus cidados, pelo qual esto se levantando em massa contra seus ditadores.

Arbia Saudita - Com uma economia dependente da exportao de petrleo, a Arbia Saudita depende das exportaes exteriores dada sua escassa produtividade em qualquer outro setor. Uma circunstncia bem aproveitada por seus scios internacionais. Entre seus principais provedores figuram Estados Unidos (com negcios avaliados em mais de 13,6 bilhes de dlares em 2009), ou China (10,8 bilhes no mesmo ano) e de forma mais modesta Frana (3,8 bilhes), Itlia (3,5 bilhes) e Gr Bretanha (3,4 bilhes). Espanha figura entre os 10 principais pases clientes com negcios no valor de quase 3,4 bilhes de dlares em 2009.

Assim mesmo, em novembro passado negociava a venda de 200 carros de combate que deveria lhe render 3 bilhes de euros, o maior contrato da indstria armamentista espanhola. Para que serviriam esses carros? As ltimas atuaes conhecidas do Exrcito da Arbia Saudita, um regime wahabi (a verso mais radical do Islamismo sunita, que implica a segregao absoluta de sexos e relega as mulheres a uma condio de segunda classe) cuja fonte de jurisprudncia a Sharia (cdigo de leis do islamismo), tem tido como cenrio Bahrein e Imen No primeiro, ativistas do reino denunciaram a entrada de militares sauditas para apoiar a monarquia na represso das manifestaes; no segundo aconteceu h alguns meses, quando o Exrcito saudita atacou posies dos huthis, rebeldes xiitas armados situados na fronteira entre Imen e Arbia Saudita, em um ataque sectrio.

No pas da dinastia dos Saud, no s a pena de morte est vigente (que se realiza por decapitao e est aumentando, segundo as autoridades locais porque o crime tem crescido) mas tambm aplicam-se castigos corporais: as amputaes de mos e ps por roubo ou a flagelao por delitos menores como desvio sexual - em referncia homossexualidade e a sodomia e a embriaguez. A discriminao das mulheres, que carecem dos mnimos direitos sua situao muito mais grave que no Afeganisto chega inclusive s suas prprias casas. No tm direito de votar nem de dirigir, nem sequer podem caminhar sozinhas sem um homem que lhes acompanhe. No h liberdade de culto, tampouco liberdades sexuais nem liberdade de reunio, imprensa ou de expresso. Os sindicatos esto proibidos, assim como os partidos polticos. Tal como seus scios europeus, a Espanha parece importar-se pouco com semelhantes mincias. Entre 1993 e 2008, segundo dados do Ministrio da Indstria, Turismo e Comrcio, a Arbia Saudita investiu na Espanha mais de 70 milhes de euros. Os habitantes da Arbia Saudita esto convocados a protestos nos dias 11 e 20 de maro.

Arglia Como no caso de Marrocos e Mauritnia, na Arglia grande produtor de gs a Espanha tem amplos acordos de cooperao que incidem positivamente em seus negcios. O governo de Madri o quarto pas provedor, depois da Frana (6,1 bilhes de dlares), China (4,7) e Itlia (3,7), com importaes no valor de quase 3 bilhes de dlares anuais. Em troca, Espanha importa gs argelino no valor de 3,9 bilhes de euros ao ano, sendo o terceiro pas cliente do regime argelino. Entre suas exportaes figuram aeronaves no valor de meio milho de euros.

Enquanto os governantes trocam apertos de mo, o estado de emergncia que impera no pas durante 19 anos tem justificado detenes irregulares, processos judiciais duvidosos, desaparies foradas, torturas, abusos policiais e restries liberdade de expresso, de impressa e civis. Desde 1993, estima-se entre 30 e 40 mil o nmero de desaparecidos. Os argelinos protestam contra seu governo desde dezembro de 2010 e exigem medidas contra o desemprego, a falta de moradia, a inflao, a corrupo, a falta de liberdades. Sua primeira vitria: a anulao do estado de emergncia que justificava as detenes irregulares de milhares de pessoas h dcadas.

Bahrein Este pequeno reino petrolfero povoado por quase 70% de xiitas e governado por uma dinastia sunita h dois sculos um scio comercial privilegiado da Arbia Saudita da seu enorme apoio monarquia bareinita, baseado em interesse econmico e estratgico porque Riad, capital saudita, no interessa uma revolta popular que produza ideias dentro do reino wahabita mas tambm do Japo, Estados Unidos e Alemanha, nesta ordem. Em troca, Bahrein exporta petrleo. Sua populao xiita, enquanto isso, suporta uma discriminao dos sunitas que alcana todas as esferas: no podem aceder a postos pblicos nem ingressar no Exrcito, denunciam que s podem morar nas piores moradias e cada vez tem sido pblico que so reprimidos. As torturas so habituais nas prises como em outros pases do Golfo Prsico, assim como a priso arbitrria de dissidentes polticos. Segundo os ativistas, h cerca de 400 presos polticos nas prises do pas. O pas no chega a um milho de habitantes. As manifestaes, reprimidas a sangue e fogo, tm conseguido at o momento a libertao de presos polticos e promessas de reformas democrticas.

Egito Durante os 18 dias que durou a revoluo popular que culminou na sada de Hosni Mubarak, apenas escutaram-se crticas europeias e as escassas proferidas pelos Estados Unidos soaram tmidas. Examinemos por qu: o primeiro scio comercial do Egito a Unio Europeia, que exportou bens no valor de quase 18 bilhes de euros em 2009. Dos pases europeus, Itlia, Alemanha, Frana e Reino Unido ocupavam os primeiros postos. Espanha o sexto exportador do pas dos faras. Estados Unidos, contudo, a terceira potncia exportadora com negcios no valor de 5,3 bilhes de dlares no em 2009. Os informes das ONG no poderiam competir com semelhante volume de negcios, muitas vezes falaram de torturas recorrentes, detenes arbitrrias, violaes em priso para obter confisses e uma total impunidade policial. No entanto, milhes de egpcios venceram seu medo e saram s ruas derrubando a ditadura e fazendo histria. Um dos ativistas que fizeram os protestos, Wael Ghonim, alava uma mensagem incontestvel ao Ocidente depois de seu xito: Vocs no se meteram em 30 anos. Por favor, no se metam agora.

Emirados rabes Unidos (EAU) O presidente Jos Luis Rodrguez Zapareto regressou de seu giro pelo Golfo eufrico pelos acordos econmicos firmados com os xeiques dos Emirados, mas sem mencionar as violaes de direitos humanos. Em EAU rico em gs e petrleo a Espanha firmou negcios no valor de 1,9 bilho de dlares somando-se assim a pases como China, Estados Unidos, Alemanha e ndia, seus principais scios comerciais. A ningum incomoda que nos sete emirados a maioria da populao (estima-se que 80%) seja de trabalhadores asiticos que carecem de direitos, muitos dos quais so explorados e vivem em condies sub-humanas. As organizaes defensoras de direitos humanos denunciam a falta de proteo e a discriminao que padecem. Alm disso, nos emirados as instituies no so eleitas de forma democrtica, e a liberdade de expresso e de imprensa passam por numerosas dificuldades.

Imen Os protestos duram j dois meses e so dirios: dezenas de milhares de iemenitas desafiam a cada dia o emprego da segurana e tambm os fiis ao ditador Abdula Ali Saleh, h 32 anos no poder, para exigir o fim da ditadura. As primeiras concesses no tardaram a aparecer ante a presso popular: Saleh renunciou reforma constitucional que preparava para permanecer no posto de forma vitalcia, logo aps renunciou a que seu filho o sucedesse, depois anunciou que no renovaria seu mandato aps 2013, quando este expirar oficialmente, e agora oferece um governo de unidade nacional que a oposio e ativistas rechaam. O ditador est cada dia mais s: sua tribo, assim como outros cls determinantes do pas mais pobre do Oriente Mdio, retirou o apoio que dava a ele. O principal religioso iemenita, Abdul Majid al Zindani, uniu-se aos manifestantes, que exigem sua sada imediata e a instaurao de uma democracia. Sua riqueza tambm reside nos hidrocarbonetos e seus principais parceiros comerciais so China, ndia, Emirados e Estados Unidos, com quem mantinha estreitas relaes militares que permitiram bombardeios secretos norteamericanos contra supostos objetivos da Al Qaeda que se atribuem ao prprio Saleh, segundo desvendado mediante informes do Wikileaks. Em matria de direitos humanos, as torturas, a represso, a falta de liberdades, a deteno arbitrria de dissidentes e a colaborao com o programa de detenes extraordinrias norteamericano o sequestro de cidados que so interrogados em pases terceiros para permitir o uso de torturas na obteno de confisses algo habitual. Estima-se que cerca de 30 pessoas morreram nas manifestaes.

Kuwait Enquanto o primeiro-ministro espanhol, Jos Luis Zapatero, passeava pelos Emirados e Qatar, o rei Juan Carlos apertava a mo do Sheik Sabah al Ahmad al Jaber, o emir do Kuwait, uma monarquia supostamente constitucionalista onde o primeiro ministro o sobrinho de Al Jaber e onde este elege a composio do governo. Seus familiares ocupam os principais postos do poder. No existem partidos polticos ainda que se tolerem organizaes ideolgicas no Parlamento eleito, que pode ser dissolvido como j ocorreu em cinco ocasies por desejo do emir. Estados Unidos, Japo, Alemanha e China so seus principais scios comerciais; os hidrocarbonetos seu grande ativo. Com Washington tem uma relao principal que explica a existncia de bases norteamericanas em territrio kuwaitiano. Suficiente para que ningum levante a voz por causa das violaes de direitos humanos como as citadas pela Anistia Internacional em seu informe de 2009. Os trabalhadores e trabalhadoras migrantes continuam sofrendo explorao e abusos e exigiam proteo de seus direitos. Em alguns casos houve expulso por ter participado de manifestaes massivas. O governo prometeu melhorar suas condies. Processaram jornalistas. Denunciou-se um caso de tortura. Havia ao menos 12 pessoas condenadas morte, mas no se teve notcia de nenhuma execuo. Os protestos no Kuwait, muito menores, tm gerado dezenas de feridos. O ltimo protesto foi realizado na tera-feira (8), centenas de kuwaitianos exigiram a queda do primeiro-ministro e maior liberdade poltica.

Lbia Petrleo e gs. Desde que Muammar al Gaddafi foi desclassificado como lder terrorista em 2002 e acrescentado categoria de scio ocidental, os negcios com a ditadura lbia 40 anos de tirania dispararam, ignorando a represso interna e a ausncia total de democracia. Gaddafi acabava sendo demasiadamente generoso para ser questionado quando investia 2 bilhes de dlares no Canad ou 30 bilhes nos Estados Unidos. Agora, o uso de aviao militar contra manifestantes que exigem o final da tirania obriga os dirigentes internacionais a opor-se. Itlia e Alemanha so seus grandes scios comerciais, Espanha o terceiro pas cliente: importa principalmente petrleo e gs. Entre 1993 e maro de 2008, investiu 189,36 milhes de euros na Lbia. As exportaes espanholas em material de defesa aumentaram 7.700% em 2008.

Marrocos As violaes de direitos humanos, principalmente relacionadas com o Sahara Ocidental, nunca vm tona nem sequer nos episdios mais violentos com o scio marroquino, muito amigo da Espanha e aliado da Unio Europeia e Estados Unidos. Entre seus principais parceiros comerciais figuram Frana, Estados Unidos, Sucia, Alemanha e Espanha. Assim como com a Arglia e Mauritnia, Madri mantm amplos acordos de cooperao com Rabat, capital do Marrocos, que incluem a venda de armas e material defensivo. Estima-se que a Espanha o principal pas provedor do reino alau dinastia que governa o pas depois da Frana e seu mercado representa a principal fonte de exportaes espanholas de toda a frica. Em 2009, Marrocos recebeu 30 milhes de euros em veculos militares espanhis. O regime de Rabat foi inicialmente compreensivo com os manifestantes, que no dia 20 de fevereiro saram s ruas para exigir reformas democrticas e econmicas, para depois atuar com contundncia diante de qualquer indcio de protesto.

Om Nesta monarquia absoluta, sem partidos polticos, e cujo sulto, Qabus al Said, derrubou seu pai em um golpe de Estado em 1970, os hidrocarbonetos so a chave de suas excelentes relaes internacionais. Emirados, ndia, Estados Unidos e China so seus principais scios comerciais, e em menor medida a Espanha, que entre 1993 e 2008 investiu 38 milhes de euros na economia do sultanato, Segundo a ONG Frontline, os ativistas de direitos humanos em Om sofrem perseguio, deteno arbitrria e torturas ao serem interrogados. Centenas de acadmicos, jornalistas e comentaristas foram detidos em prises massivas e deixados incomunicveis sem nenhum tipo de assistncia legal. Om signatrio de trs dos sete tratados fundamentais das Naes Unidas sobre os direitos humanos. As organizaes independentes de direitos humanos no podem operar dentro do pas. Os protestos em Om resultaram na morte de duas pessoas e exigem respeito aos direitos humanos, reformas polticas e econmicas que lutem contra a inflao e aumentem os salrios e liberdade de informao.

Qatar Outro dos destinos o primeiro-ministro espanhol, Jos Luis Zapatero, que deu importantes frutos econmicos, com contratos acertados em 3 bilhes de euros mais de 2,7 bilhes correspondem a investimentos em uma empresa energtica e outra de telecomunicaes e 300 milhes a uma caixa de poupana e um dos poucos pases a salvo, at o momento, dos protestos. Antecipando-se a qualquer contestao interna, o regime do Qatar uma monarquia tradicional onde todas as decises recaem na dinastia reinante acaba de adiantar as eleies municipais, um passo a mais no lento processo de reformas iniciado pelo xeique Hamad ben Jalifa al Thani. Mantm excelentes relaes com todos os grupos, com o Ocidente, com o mundo rabe e com o Ir, o que o tem feito mediador por excelncia na regio. Japo, Estados Unidos, Alemanha e Itlia so seus principais pases provedores, e a Espanha, seu stimo pas cliente. Em matria de direitos humanos, as restries liberdade de expresso apesar de haver criado a Al Jazeera so frequentes, os ativistas so habitualmente perseguidos, a Internet vigiada e h acusaes contra o regime de Al Thai por no garantir os direitos mnimos dos trabalhadores estrangeiros. No existem partidos polticos. Os qatari esto sendo convocados para uma manifestao ainda no ms de maro.

Tunsia Os 20 anos no poder de Ben Ali lhe deram o domnio sobre a economia tunisiana e criaram vnculos com a Frana, Itlia, Alemanha e Estados Unidos, entre outros pases ocidentais, na forma de contratos. A cleptocracia foi derrubada pelo movimento popular revolucionrio que explodiu depois da morte de um jovem provinciano estendendo-se por todo o norte da frica e o Oriente Mdio. Os motivos econmicos o grande desemprego, a alta dos preos, a escassez de moradia combinaram-se com uma populao educada e cansada da corrupo do regime, mas, como no resto dos protestos, as violaes de direitos humanos, desde a represso policial at a discriminao ou a falta de liberdades, tambm desempenharam um papel.

Fonte: Mnica G. Prieto - Periodismo Humano (Brasil de Fato)