Sueli de Fátima- Eu posso não falar pomposo como vocês, mas eu sei muito bem o que nós sofremos"
Aracaju, 16 de Maio de 2010, Bairro Cirurgia. A sede da Central Única dos Trabalhadores estava um caos naquele início de noite: Quatro reuniões ocorrendo no mesmo espaço, gritaria pra todo canto, uma confusão dos infernos. Enfim, aquele espaço...
Publicado: 10 Junho, 2010 - 19h59
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sueliAracaju, 16 de Maio de 2010, Bairro Cirurgia. A sede da Central nica dos Trabalhadores estava um caos naquele incio de noite: Quatro reunies ocorrendo no mesmo espao, gritaria pra todo canto, uma confuso dos infernos. Enfim, aquele espao estava repleto de rudos que qualquer gravador, com a maior resoluo que fosse, a melhor qualidade de udio, entraria em greve e s voltaria a gravar aps conseguir um bom adicional de insalubridade e um plano de carreira. Imaginem gravar uma entrevista em meio a este campo de batalhas e rudos, mas no haveria muito a fazer. A entrevista j estava marcada e desistir de ltima hora significava, alm de grave ofensa, desconsiderar uma grande histria a ser contada para o povo sergipano. Dito e feito.
Chego exatamente s 18h20min, vinte minutos atrasado, e Sueli j estava a minha espera de pulsos cruzados e sorriso armado, municiada de papis e uma grande histria para me contar. Quem no teve a oportunidade de conhecer pessoalmente a presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domsticas do Estado de Sergipe nunca vai imaginar que ali, debaixo daquele semblante calmo e taciturno, da fala pausada e risonha, h uma histria de uma vida dura e de luta intensa. A simpatia daquela senhora to imensa que ela nem se importou com a cara de pau do entrevistador, que pediu 5 minutinhos para fumar um cigarro na porta da CUT.
Esta a primeira parte de uma grande entrevista com Sueli Maria de Ftima, trabalhadora domstica e sindicalista h mais de 20 anos, na extensa batalha por direitos e dignidade no trabalho domstico. Da infncia pobre e sofrida na cidade de Londrina, do envolvimento ao mundo sindical at a participao Conferencia Internacional do Trabalho em maio deste ano, em Genebra.
Parte 1- Comeando do comeo.
CUT- Como foi a sua vida, como foi a sua infncia?
Sueli de Ftima- Eu sou a mais velha de sete irmos. Eu nasci em Londrina e vim para c com 18 anos, aqui eu casei e tive meus filhos. Sou separada e sou a chefe da minha famlia, eu tenho um casal de filhos que j esto criados. A minha vida como trabalhadora domstica comeou quando eu tinha 12 anos, l em Londrina. Fui trabalhar por necessidade, eu tinha que ajudar meus pais a criar meus irmos. Primeiro eu fui trabalhadora domstica por necessidade, depois foi por opo. Foi como domstica que eu consegui tudo que eu tenho na minha vida, minha dignidade, criar meus filhos...
CUT- Como foi esta experincia de comear a trabalhar to cedo, ainda com 12 anos de idade?
S.F-Olhe, eu vou contar a histria pra voc, se for muito longa depois voc resume (risos), mas foi o seguinte: Minha me era do lar e meu pai trabalhava em um moinho de trigo, era chefe de mquinas. Eu era a filha mais velha e a minha me era daquele tipo de mulher que tinha menino no comeo do ano, quando chegava ao final do ano pode ter certeza que j vinha outro. Ns no tnhamos nenhum parente l para ajudar minha me a criar os meus irmos, ento era eu que ajudava minha me quando os meninos nasciam. A eu tive que aprender a fazer tudo, com doze anos de idade eu j era uma trabalhadora domstica, mas s em casa. No parto de um dos meus irmos minha me ficou doente, e eu tive que ajudar mais em casa, acabei perdendo os testes da escola e reprovei de ano.
Meu pai quando soube me deu uma surra, e ainda me deixou sem roupa nova para o natal naquele ano. Quando foi no dia de natal, meu pai me pediu que eu arrumasse os meus irmos para a quermesse. Eu deixei todo mundo arrumadinho pra festa pensando que ia tambm. Quando ele estava saindo com os meus irmos ele se virou para mim e disse: Filho meu que d gosto no estudo ganha roupa nova e tem direito a ir pra festa. Filho meu que no me d gosto no estudo, alm de ter tomado a surra fica em casa de castigo. Eu fiquei indignada, mas virei pra ele e respondi T certo meu pai, mas saiba que eu perdi o ano porque fiquei cuidando de minha me e perdi as provas, mas no se preocupe no que esta a ltima vez que eu vou precisar do senhor pra roupa nova que a partir de hoje eu vou trabalhar, e ainda tomei mais uns cascudos porque eu era ousada e respondi a ele( risos).
Quando comeou o ano letivo, sabe para quem eu fui pedir emprego? Pra minha professora no colgio (risos). Me lembro dela at hoje, dona Ivani, fui trabalhar na casa dela cuidar do filho mais novo, ainda nen. Quando ela saia pra dar aula, ela me botava na frente...
CUT- Do carro?
S.F-No, andando mesmo, que nem escravo. Ela me botava na frente e me levava pra casa da sogra dela, j que ela no tinha confiana em mim, uma criana cuidando de outra criana, quem ia confiar? (Risos). O menino era forte, bem gordinho, e eu toda magrela que s tinha osso. Depois de um ano trabalhando l, eu estava botando o menino pra dormir n, quando ele se assustou com alguma coisa e pulou, foi os dois pro cho, uma queda feia danada. Ele ficou com um galo na cabea e eu toda esburrachada (risos). A sogra da minha professora me deu uma surra de cinturo e me mandou embora.
CUT-E a sua professora no fez nada?
S.F- Nada, ficou caladinha. A sogra dela me bateu e ainda ameaou prender minha famlia se eu abrisse a boca, disse que derrubar o neto dela era crime e que ia me prender tambm. Eu tive um medo danado e fiquei caladinha, no queria que meu pai fosse preso, imagine...
CUT -Voc trabalhava e estudava?
S.F- No, no comeo eu e minha professora conversamos para que ela passasse as matrias da escola pra mim depois do trabalho, mas isso nunca aconteceu. A eu desisti de estudar.
CUT- Mas voc no desistiu de trabalhar...
S.F- No, eu fui trabalhar em outras casas depois, mas peguei um trauma danado de ser bab (risos). Fazia todo tipo de servio, mas bab eu no fazia no, acabei trabalhando mais com cozinha. Minha me cozinhava muito bem e aos dezessete anos eu era uma senhora cozinheira de forno e fogo, tinha competncia mesmo. Foi a quando a gente voltou pra Sergipe. Meu pai foi mandado embora do emprego dele l em Penedo, mas conseguiu outro trabalho, foi trabalhar como operrio em uma fbrica de gesso em Aracaju, ali na Avenida Coelho e Campos, e eu continuei trabalhando como domstica. Aqui eu me casei e vivi por toda a minha vida.
CUT-Como foi que a senhora entrou em contato com o movimento sindical, com a pautas das trabalhadoras domsticas?
Pois , at ento eu trabalhava mas no tinha nenhum contato com a Associao das Domsticas, com a casa das domsticas. Um certo dia uma colega me chamou para participar de uma reunio l na Associao, para ver se eu ganhava uma casa. Isso foi l no final da dcada de setenta, comeo da dcada de oitenta, por a. O que ocorreu foi o seguinte: O arcebispo Dom Tvora deixou um terreno para a construo de casas populares para as trabalhadoras domsticas, 398 casas. Da surgiu, no governo do doutor Augusto Franco, uma parceria entre o governo, a COHAB e a Arquidiocese daqui, mas faltava uma associao para ser o representante legal do projeto, para organizar a distribuio das casas. Da surgiu a Associao das Trabalhadoras Domsticas.
Eu conhecia a presidente na poca, uma mulher que dedicou a vida toda pela causa das trabalhadoras domsticas, e foi ela quem me convidou para participar desta reunio. Acontece que ela teve que se atrasar porque tinha ido a uma missa e eu, que sempre fui morta de vergonha, fiquei do lado de fora da reunio at ela chegar. Logo que ela chegou foi logo perguntando: menina, o que que voc t fazendo a do lado de fora? T com vergonha ? Vamu entrar logo mulher (risos). Da ns entramos, ela me apresentou na reunio e eu fiquei observando aquela coisa toda: A assistente social dirigindo a reunio, as mulheres da associao falando e tudo mais, quando que veio na minha cabea que eu poderia ajudar, eu poderia contribuir com tudo aquilo.
A associao tinha muitos problemas que voc nem imagina. S para voc ter uma idia, a secretria da associao, que ficava responsvel pelas atas e tudo mais, a menina era analfabeta, v se tem cabimento uma coisa dessas( risos). A logo eu pensei: eu sei ler e escrever, eu posso ajudar mais. Foi a que eu comecei a participar da associao.
Uns meses depois aconteceu a eleio para eleger uma nova gesto da associao e uma das companheiras me indicou para ser secretria da chapa. Foi a que uma das meninas l, que eu nem lembro mais quem era, disse que no concordava com a minha indicao porque eu era muito nova ainda. Eu, que tinha s alguns meses de filiao, fiquei morta de vergonha, mas no arredei p no. Qual so direitos dos associados? No votar e ser votado? Ento agora eu que me candidato a ser secretria da chapa, fui falando mesmo(risos). Da a gente fez a composio e a minha chapa ganhou as eleies, a chapa da atual diretoria na poca.
CUT-E da deslanchou.
S.F: Foi, da deslanchou tudo. Eu comecei a minha luta em uma instituio assistencialista, trabalhando com o consrcio de casas populares, com tquetes de leite, que a gente tinha conseguido na poca, a gente trabalhava com estas questes mais assistencialistas mesmo. Na primeira vez que eu fui ler a ata da reunio, da primeira reunio daquela gesto, me tremia feito vara verde (risos) mas li a ata at o fim. Nesta poca a associao contava com mais de trs mil e quinhentas associadas, mas depois que saiu a primeira etapa das casas populares foi uma debandada geral (risos). Antes, a gente tinha que marcar duas reunies por ms com o povo, porque no cabia todo mundo junto na Casa da Domstica, mas depois que saiu o primeiro lote foi um deus nos acuda.
CUT- E como foi a fundao do sindicato aqui em Sergipe?
S.F-Calma rapaz, eu vou chegar l (risos). Quando foi em 87 eu recebi um ofcio para representar a trabalhadora domstica no Conselho Municipal da Condio Feminina, aquele que foi fundado por Jackson Barreto, prefeito na poca. Quando eu chego na reunio e me apresento como representante das domsticas. O representante da Associao dos Professores, que era um homem- veja que absurdo, mandaram um homem para a discusso de um conselho de condio feminina- este homem vira para os outros membros da reunio e fala , se as domsticas tivessem algum que falasse por elas, que fosse capacitada... mas no tem no. Da eu virei para ele e falei Quem que vai pro mdico com senhor quando o senhor t doente? Voc que sabe o que voc t sentindo, no ? Pois ento, eu posso no saber falar todo direito e pomposo como vocs, mas eu sei muito bem o que as domsticas sentem, e estou aqui para colocar as necessidades da nossa categoria. Nossa, foi uma chuva de palma pra todo canto (risos) e eu fiquei morta de vergonha, nunca tinha sido aplaudida daquele jeito. Nunca mais encontrei aquele homem de novo na minha frente, nem sei mais quem (risos).
CUT- Mas esta reunio tambm era para a constituinte?
S.F- Era sim, a gente estava discutindo um seminrio de formao que pautasse a mulher e o mundo do trabalho, para a discusso da constituinte de 88. Quando foi o seminrio para a aprovao dos delegados para o seminrio nacional, para ir para Braslia, eu fui aprovada por aclamao( risos), porque a gente contribuiu muito para a discusso aqui em Sergipe.
Continua...