Escrito por: Central Única dos Trabalhadores de Sergipe (CUT/SE)

Venezuela, dez anos após o golpe

Há exatos dez anos, entre os dias 11 e 13 de abril de 2002, um substantivo próprio quase desconhecido começou a figurar de modo recorrente nos noticiários políticos do mundo todo: Venezuela. Até então, tal nome era sinônimo de petróleo e de...

H exatos dez anos, entre os dias 11 e 13 de abril de 2002, um substantivo prprio quase desconhecido comeou a figurar de modo recorrente nos noticirios polticos do mundo todo: Venezuela. At ento, tal nome era sinnimo de petrleo e de beldades bem sucedidas em concursos internacionais. Entretanto, depois dessas histricas e tensas 72 horas, tudo mudou. O pas sul-americano passou a concentrar o interesse de analistas e a despertar as mais diferentes paixes.
O que aconteceu? Por que a mais madura das democracias da regio passava por tamanha instabilidade? Por que alguns militares apoiaram um golpe contra um ex-companheiro de armas? Por que lideranas civis apresentadas como responsveis e bem intencionadas rompiam de forma to violenta com a legalidade? E por que as grandes massas se mobilizaram a ponto de reconduzir o presidente da Repblica deposto ao poder, garantindo a continuidade da democracia? Afinal, quem era Hugo Chvez?
As respostas do mainstream apelaram para o argumento mais convencional: populismo! Tal como um raio que cai de um cu azul, Chvez apareceu no cenrio poltico venezuelano destruindo as boas prticas de governo com polticas supostamente demaggicas e irresponsveis. Boa parte da esquerda, por sua vez, encontrava-se em dificuldade para se posicionar de maneira mais firme e apresentar respostas alternativas. Embora seja um pas vizinho, a Venezuela tinha uma trajetria muito pouco conhecida pelos brasileiros. Talvez isso se deva falta de acontecimentos espetaculares durante boa parte do regime puntofijista (1958-1989). Nada de rupturas institucionais, tampouco grandes projetos populares. Ambiente bem diferente do que se via no subcontinente: revolues, contrarrevolues, governos populares, ditaduras militares...
A Venezuela e os venezuelanos ficaram de fora dos principais crculos de lideranas latino-americanas que, ao amargarem o exlio, pensaram e sofreram juntos seus problemas. Vista de longe, parecia um pas excepcional: democracia liberal e ausncia de restrio econmica externa. Era a sombra da Venezuela Saudita: petrleo e dlares. Os que haviam visitado a exuberante Caracas da dcada de 1970 pareciam certos de que os venezuelanos estavam a um passo de romper a camisa de fora do subdesenvolvimento. Mas poucos acompanharam o que aconteceu depois.
Baixa nos preos da energia, exploso da dvida externa. E a Venezuela mergulhou de cabea no cenrio latino-americano da dcada perdida. A mistura do empobrecimento com as polticas de ajuste do FMI levaram ao Caracazo de 1989, quando a populao se rebelou contra o projeto neoliberal. Os militares tiveram de sair s ruas para reprimir a populao. A brutalidade, a corrupo e o sentimento de decadncia criaram constrangimento no prprio seio da Fora Armada: vrios grupos de oficiais se articulam em movimentos clandestinos. Um deles era liderado pelo tenente- coronel Hugo Chvez, que deflagrou sublevao militar contra o governo em 1992: com forte discurso moralista e de tom claramente antineoliberal, defendia uma constituinte para a refundao do pas. Ao mesmo tempo em que foi militarmente derrotado, o movimento de Chvez conquistou importante vitria poltica. Garantiu a criao de uma liderana antiestablishment, que se contrapunha a todo o modelo que se encontrava em colapso.
Por outro caminho
Depois de liberado da priso, o ex-militar se convenceu que a melhor maneira de implantar o seu projeto seria pela via institucional. Em 1998, venceu eleies para a presidncia da Repblica com 56% dos votos. importante destacar o simbolismo dessa vitria: num momento em que FHC comeava seu segundo mandato, que a Argentina de Menem era apresentada pelo FMI como um modelo a ser seguido e que Fujimori governava absoluto no Peru, Chvez assumia o poder com um discurso muito crtico em relao ao Consenso de Washington. Estava sozinho, remando contra a mar. A ausncia de um partido ou de uma slida base social organizada fez com que o novo governo estimulasse a participao direta para promover reformas estruturais. A comear pela mais importante: a constitucional. Por plebiscito, foi aprovada a convocao de uma Assembleia Constituinte. A nova Carta foi apresentada e referendada por voto direto. Depois disso, Chvez decidiu levar a cabo mudanas mais profundas: publicou, no final de 2001, 49 decretos- lei, que deveriam regulamentar vrias matrias previstas na nova Constituio, e que incluam temas relevantes como petrleo e gs, terras, bancos, entre outros. O controle efetivo sobre a estatal de petrleo PDVSA aparecia como um objetivo fundamental.
Golpismo
Foi a partir desse momento que a direita comeou a articular uma srie de iniciativas para derrubar o presidente. Muitos dos principais executivos da PDVSA se recusaram a aceitar as mudanas. Diante de sua demisso, a oposio convocou a segunda greve geral em menos de seis meses, promovendo, tambm, manifestao pedindo pela renncia de Chvez. Em meio manifestao, no dia 11 de abril de 2002, levaram a termo, junto com alguns militares e espetacular sustentao miditica, um golpe de Estado. Uma suposta renncia do presidente foi anunciada, enquanto Pedro Carmona Estanca, presidente da principal federao patronal do pas, foi empossado em governo dito provisrio. Carmona recebeu apoio imediato do FMI e dos governos dos Estados Unidos e da Espanha: no dia 12 de abril, o Fundo anunciou a disponibilidade de recursos financeiros para a Venezuela. Algumas horas depois, a visita do embaixador norte-americano ao ex-lder empresarial representou o reconhecimento implcito de seu pas ao governo golpista.
O governo Carmona, que durou menos de dois dias, adotou medidas duras: derrogou a Constituio aprovada em referendo popular, dissolveu a Assembleia Nacional e reservou-se o direito de destituir governadores e prefeitos eleitos. Tratava-se, portanto, de uma grave violao da legalidade e de uma forte orientao autoritria, que ameaava, ademais, repercutir regionalmente. A conjuntura sul-americana de 2002 j no era a mesma de 1999: o colapso da economia argentina colocava em xeque os ensinamentos do neoliberalismo, ao mesmo tempo em que Fujimori havia cado no Peru e que Lula despontava como o favorito nas eleies presidenciais do Brasil. A vitria da violncia poltica da direita na Venezuela contra um projeto de esquerda em ascenso poderia servir de paradigma para as foras conservadoras dos demais pases, fortalecendo prticas polticas que ameaavam diretamente a democracia. Resistncias
A mobilizao dos setores populares e a organizao de amplo movimento cvico- militar, entretanto, garantiram a reconduo de Hugo Chvez presidncia da Repblica em 13 de abril de 2002. Nesse sentido, mais do que qualquer coisa, as 72 horas que transcorreram nesses dias de abril de 2002 significaram a afirmao de uma tendncia, uma reverso da corrente: a esquerda poderia ser forte o sufi ciente para se apresentar como alternativa poltica nos pases em crise e para evitar possveis investidas extralegais das elites tradicionais. Aps a reverso do golpe, foras polticas progressistas alcanaram o poder por meio de eleies democrticas em vrios pases da regio Brasil (2002), Argentina (2003), Uruguai (2004), Bolvia (2005), Equador (2006), Nicargua (2006), Paraguai (2008), El Salvador (2009) e Peru (2011). E onde quer que na Amrica do Sul a direita tenha tentado reproduzir a lgica da desestabilizao, foi derrotada antes mesmo de chegar ao golpe mais uma vez na prpria Venezuela (2002-2003), desta vez pela via econmica de um prolongado locaute, no Brasil (2005), na Bolvia (2008), na Argentina (2009-2010), no Paraguai (2010) e no Equador (2010). No se pode esquecer, porm, do exitoso golpe conservador em Honduras (2009).
O impacto dessa tentativa de golpe na poltica exterior da Venezuela tambm foi grande. A rede de relacionamentos internacionais da oposio inclua alguns dos parceiros mais tradicionais do pas, como os Estados Unidos e a Espanha, enquanto os pases do Sul, incluindo o Brasil, apoiaram o governo eleito. No locaute contra o governo Chvez, em dezembro de 2002, o Brasil enviou navio petroleiro para garantir o fornecimento de gasolina para a Venezuela.
Economias hermanas
A partir do perodo de maior estabilidade da Venezuela bolivariana, o fortalecimento das relaes bilaterais atingiu outro patamar. Em 2005, firmou-se Aliana Estratgica entre Lula e Chvez. Acordou-se, inclusive, a realizao de encontros presidenciais peridicos. Foram 28 desde ento. A corrente de comrcio se multiplicou mais de sete vezes. A presena brasileira se ampliou, assim como a cooperao tcnica, com instalao de representaes de agncias pblicas brasileiras na Venezuela.
A Embrapa coopera para o desenvolvimento agrcola de um pas com enormes potencialidades, mas que importa 70% dos alimentos que consome. A Caixa Econmica Federal coopera para a sustentabilidade urbanstica, social e econmica do pas vizinho, apoiando o programa Grande Misso Vivenda (construo de trs milhes de moradias at 2019) e a instalao de terminais do Banco da Venezuela em reas perifricas. A Agncia Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) apoiou a construo de fbricas de refrigeradores e mquinas de processamento de alimentos. O Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) assessora o planejamento territorial e industrial de fronteira de produo de hidrocarbonetos, o estado de Sucre e a Faixa Petrolfera do Orinoco, alm de realizar estudos conjuntos sobre a integrao produtiva e de infraestrutura entre o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela.
O grande desafio transformar o crescimento conjuntural do comrcio em integrao produtiva. Os presidentes Chvez e Rousseff deram um grande passo ao determinar a elaborao de estudos para subsidiar um Plano de Desenvolvimento Integrado entre o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela.
O voto democrtico nas eleies presidenciais venezuelanas de 07 de outubro deste ano ser determinante para o aprofundamento do processo de integrao regional. Novamente, na Venezuela, poder-se- definir a tendncia de mais um ciclo poltico regional: consolidao dos avanos de governos progressistas e fortalecimento da integrao sul-americana ou reverso de conquistas com a volta da direita ao poder e realinhamento aos Estados Unidos.
Pedro Silva Barros e Luiz Fernando Sann Pinto fazem parte da Misso do IPEA na Venezuela
Fonte: Pedro Silva Barros e Luiz Fernando Sann Pinto - BRASIL de FATO